Como iremos demonstrar neste verbete, música e fala são dois termos bastante interconectados, de forma que podemos desenvolver nosso tema pensando em responder a duas grandes perguntas: 1- Qual a música da fala; 2) Qual a fala da música?
A primeira área em que geralmente pensamos quando falamos sobre música da fala é a prosódia, a qual analisa a fala em termos de seus elementos musicais como ritmo da fala (variação de padrões duracionais), entonação (variação de frequência fundamental (f0)) e dinâmica da fala (variação da intensidade). Essa visão musical da prosódia da fala é expressa por vários autores, como podemos notar nos trechos abaixo:
“A prosódia abrange uma vasta gama de fenômenos linguísticos e paralinguísticos relacionados, do ponto de vista de sua substância, às variações da frequência fundamental (F0), da intensidade e da duração do sinal da fala – os “elementos musicais” da linguagem.” (Moraes, J. A. Fonética. In: Verbetes LBASS. Disponível em: https://gepf.falar.org/entries/2).
“Prosody: The Music of Language and Speech[1]” (Boutsen, 2003. Prosody: The Music of Language and Speech. The ASHA Leader. https://doi.org/10.1044/leader.FTR1.08042003.6).
“Taken together, we found evidence that the perception of speech prosody could be associated with the perception of music via the perception of rhythm, and that the perception of rhythm and melody are separable” (Hausen et. al., 2013).
Essa musicalidade da fala é também notada por falantes leigos de uma língua. Quantas vezes nos deparamos com situações em que pessoas dizem: “O baiano fala cantado”, “O gaúcho fala cantado”, “O mineiro fala arrastado”. Essas falas são manifestações que demonstram uma percepção da música da fala. No entanto, devemos ter consciência de que qualquer variedade de uma língua possui variações melódicas (f0), rítmicas (duração) e agógicas (intensidade). Do contrário, soaríamos como um robô, o que nos faz lembrar das primeiras sínteses de fala da história das ciências da fala, em que a prosódia não era um elemento preponderante de manipulação.
Nesse contexto musical da fala, poderíamos nos questionar: mas a fala é um tipo de canto? Certamente, há estilos de canto, como a bossa nova e o folk norte-americano, em que a fala se aproxima muito do canto, mas mesmo assim há diferenças. Para uma abordagem sintética das relações entre fala e canto, sugiro a palestra “The interplay between speech and singing” (As relações entre fala e canto) apresentada por Johan Sundberg, Gláucia Salomão, Alexsandro Meireles e Beatriz Raposo de Medeiros (https://www.youtube.com/watch?v=83BIbEh2Uh4).
Recentemente, publicamos um artigo em que apresentamos algumas das diferenças acústicas entre fala e canto (Raposo de Medeiros, B., Cabral, João Paulo, Meireles, A. R.,, Baceti, A., A comparative study of fundamental frequency stability. In: Speech Communication, 128(6), January 2021, DOI: 10.1016/j.specom.2021.02.003). Neste artigo, discutimos o fato de fala e canto serem mecanismos de produção vocal com propriedades articulatórias distintas, as quais produzem diferentes percepções vocais. A literatura da área mostra haver uma estabilidade tonal de f0 no canto associada com alvos de frequência fundamental pré-definidas, i.e., notas musicais, as quais não são definidas a priori na fala, gerando uma variação micromelódica muito grande neste estilo de vocalização. Assim, mostramos no artigo que de fato, mesmo num estilo mais próximo da fala, como a MPB, houve uma menor variabilidade das medidas de f0 no canto, devido aos seus alvos fixos de produção de f0, i.e., a necessidade de produzir notas musicais pré-definidas numa partitura musical ou provenientes de uma harmonia musical pré-existente.
Quando pensamos em música geralmente pensamos em notas musicais padronizadas em uma escala de 7 notas com 5 acidentes (bemóis[2] e sustenidos). Ex.: Dó (262 Hz), Ré (294 Hz), Mi (330 Hz), Fá (349 Hz), Sol (392 Hz), Lá (440 Hz), Si (494 Hz)[3]. As composições feitas com base nessa escala são as que ouvimos diariamente nas rádios do mundo ocidental em diversos estilos, como heavy metal, death metal, pop rock, funk, country rock, gospel. No entanto, há outros tipos de música que utilizam intervalos menores do que o semitom (eg. ¼ tom, ⅛ tom), como a música microtonal[4], utilizada, entre outros, por compositores como Béla Bartok, Charles Ives e Alóis Hába. Além disso, a música tradicional arábe se utiliza de microtons em suas composições, o que pode soar desafinado aos nossos ouvidos não acostumados com escalas microtonais.
Como sabemos, instrumentos de corda sem trastes (eg. violino, violoncelo) não possuem uma afinação tão bem definida como instrumentos de tecla como o piano, ocasionando muitas vezes alterações na afinação padrão ocidental por efeitos estéticos. Da mesma forma, a voz humana ao cantar, assemelha-se bastante a estes instrumentos sem trastes, a ponto de Joshua Steele (1775) propor uma transcrição da fala com base em escalas de quartos de tom que pode ser executada por um violino.
O livro de Steele tinha a intenção de mostrar que a expressão musical da fala poderia ser descrita e comunicada por escrito. A base do sistema de transcrição da fala era, diferente das 12 notas musicas da música ocidental, uma escala de 24 quartos de tom: C, C (1/4 up), C#, C# (1/4), D, D (1/4), D#, D# (1/4), E, E (1/4), F, F(1/4), F#, F# (1/4), G, G(1/4), G#, G# (1/4), A, A(1/4), A#, A# (1/4), B, B(1/4). Podemos considerar que sua transcrição foi uma das primeiras análises instrumentais da prosódia da fala, por ser muito detalhada, semelhante a uma mistura de curvas de f0, notação musical e outras representações de notação prosódica. Símbolos segmentais como notas e pausas musicais, bem como símbolos representando a dinâmica musical da fala também estavam presentes na transcrição.
Em Meireles, Simões, Ribeiro e Raposo de Medeiros (2017) apresentamos uma nova metodologia de transcrição da prosódia da fala, a qual propunha-se representar num único plano todos elementos prosódico-musicais da fala. Esta metodologia mostrou-se mais eficiente do que a transcrição em notação musical de programas tradicionais como Melodyne, Cubase, Logic Pro, mas ainda está em fase de aperfeiçoamento.
Pelas décadas de estudo prosódicos da fala, apesar de não ser propriamente um estilo de canto, parece-nos haver um certo consenso de que há musicalidade na fala, mas, por outro lado, será que a fala e/ou a linguagem também tiveram influência na composição e/ou teoria musical. Esta questão nos lembra o prefácio do livro de Bolinger (1986), que diz ser a entonação “importante demais para ser deixada apenas para linguistas e afirma haver também relevância para psicólogos, músicos, juristas, antropólogos, escritores e todos das artes da linguagem”[5] (tradução livre). A literatura, obviamente, nos mostra que houve desde sempre na história da música uma influência de questões linguísticas nas expressões musicais, seja instrumental, seja cantada.
Desde os primórdios da música ocidental, observa-se uma influência da fala no canto, como podemos ver no canto gregoriano, um dos primeiros estilos de canto do ocidente (a partir do século VI). Como neste canto não havia um ritmo pré-determinado, a instrução para cantar era seguir o fluxo natural do ritmo da fala (cf. van Kampen, 2017).
Anos mais tarde, durante o período barroco (1600-1750), época em que o sistema tonal e as escalas musicais foram padronizadas por uma afinação temperada, observa-se também uma forte influência da retórica grega nas composições musicais, como mostrado por Laurin (2012) e Toumpoulidis (2005). Em um artigo recente, Silva (2019) apresenta uma análise baseada na Retórica grega de uma análise da música Construção de Chico Buarque, mostrando que esse tipo de análise persiste até os dias de hoje.
Além dessas influências diretas de aspectos da fala e/ou língua nas análises e/ou composições musicais, é importante notar que tradicionalmente a terminologia das análises musicais é baseada totalmente em termos da sintaxe, como podemos notar em termos como semi-frase, frase, período simples e período composto. Vejamos abaixo um exemplo de um período musical da música Ode à Alegria de Beethoven:
No década de 1980, surgiu um outro trabalho que procurou aproximar mais ainda em termos teóricos a análise linguística da análise musical: A generative theory of tonal music, do compositor americano e teorista musical Fred Lerdah e do linguista Ray Jackendoff (Lerdahl, F, and Jackendoff, R, 1983), trabalho influenciado pela teoria gerativa do linguista americano Noam Chomsky. A teoria foi largamente aplicada durante a década de 1980, porém caiu em desuso. Para uma consulta mais ampla sobre a influência da linguística nas teorias musicais, consultem McDonald (2005).
Como podemos ver neste breve relato, música e fala são auto-dependentes, como se fossem duas faces de uma mesma moeda. Termino este texto, lembrando a fala do guitarrista mexicano Carlos Santana em seu curso disponível em www.masterclass.com. Toda composição minha é um poema. Toda frase musical minha é baseada num texto que estou imaginando em minha mente.
Notas
[1] Prosódia: A música da língua e da fala” (tradução livre)
[2] Bemol = alteração da nota meio tom abaixo. Sustenido = alteração da nota meio tom acima.
[3] fonte: https://pages.mtu.edu/~suits/notefreqs.html
[4] Burns, Edward M. (1999). "Intervals, Scales, and Tuning", The Psychology of Music second edition. Deutsch, Diana, ed. San Diego: Academic Press. ISBN 0122135644.
[5] Intonation is "too important to be left just to linguists" and claims relevance for psychologists, musicians, jurists, anthropologists, writers and "all those in the language arts".
Referências
1 - Aspectos musicais na fala
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2- Aspectos linguísticos na música
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