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Morfofonologia
Luiz Schwindt | UFRGS

Como o nome sugere, morfofonologia é uma área da Linguística que trata da relação entre morfologia e fonologia. Essa relação pode ser pensada a partir de pelo menos dois pontos de vista: um mais geral, que diz respeito à comunicação entre entidades morfológicas e fonológicas, e outro mais específico, que se refere ao contato estabelecido entre os componentes morfológico e fonológico da gramática — o que em linguística formal se costuma rotular como interface.

Considerando-se o primeiro ponto de vista, podemos dizer que morfofonologia se define como o estudo da relação entre as estruturas morfológica e fonológica dos vocábulos. A estrutura morfológica compreende os morfemas propriamente ditos ou matrizes de traços morfossintáticos, bem como os processos envolvidos na formação e na flexão do que se entende como palavra gramatical. A estrutura fonológica, em contrapartida, diz respeito aos fonemas ou matrizes de traços fonológicos, bem como aos processos envolvidos na construção da palavra fonológica, incluindo categorias a ela subordinadas.

O debate sobre o mapeamento de unidades mórficas em unidades sonoras é o primeiro desafio de uma abordagem morfofonológica, e é justificado pelos seguintes fatos: (i) nem todos os morfemas se realizam de forma foneticamente aberta (ex. não há um som a partir do qual se depreenda o gênero da palavra pente); (ii) nem todos os sons enunciados ou ouvidos correspondem a morfemas da língua (ex. o [l], em cha[l]eira não tem em princípio afiliação morfológica); (iii) as relações entre unidades mórficas e fonéticas, e vice-versa, não são necessariamente de um para um (ex. o morfema de plural nominal pode se realizar como [s] ou [z], e, na direção contrária, a vogal [ʊ] pode representar tanto um artigo definido quanto um pronome oblíquo). Esse atestado não isomorfismo entre estruturas morfológicas e sonoras, contrariando a exigência de univocidade preconizada na linguística da primeira metade do século XX, alimentou a proposição de noções téorico-analíticas como morfema zero, morfe vazio, exemplificados, acima, respectivamente em (i) e (ii), e alomorfia, a seguir discutido e exemplificado.

O conceito de alomorfia tem especial relevância para os estudos em morfofonologia, em diferentes correntes teóricas. Nem toda a relação de um-para-muitos, porém, pode ser classificada como alomorfia. Alternâncias predizíveis fonologicamente, sem restrição a contextos morfológicos específicos, constituem alofonia a rigor. É o caso do comportamento da consoante nasal em coda em português e em muitas outras línguas, que frequentemente resulta em assimilação do ponto de articulação do segmento que a sucede. Tal processo atinge palavras prefixadas por in- (ex. [ĩm]pecável, [ĩŋ]grato etc), mas também palavras sincronicamente não prefixadas com o mesmo contexto fonológico (ex. [ĩm]pressão, [ĩŋ]greme). Diferentemente, se admitimos, por exemplo, que um processo que eleva a vogal tônica da raiz de verbos da 3ª conjugação se aplica especificamente à 1ª pessoa do singular do presente do indicativo e às formas desse tempo derivadas (ex. s[i]go / s[i]ga), estamos diante de um caso de alomorfia fonologicamente condicionada, fenômeno do domínio da morfofonologia.

De um ponto de vista mais restrito, morfofonologia pode se definir como uma abordagem da arquitetura gramatical que se ocupa de explicar a comunicação entre os componentes morfológico e fonológico. Essa acepção, como se vê, conta com o pressuposto de que gramáticas são em alguma medida modulares, e de que há evidência para se conceber um sistema responsável por formar palavras e outro para operar com a estrutura sonora de entidades linguísticas.

Quando abordamos a afixação, por exemplo, estamos em princípio no domínio da morfologia. Ao tratarmos da silabificação, por outro lado, estamos no domínio da fonologia. Se nos deparamos, entretanto, com um caso em que a silabificação se define a partir da afixação, nos confrontamos com um fenômeno morfofonológico. É o caso do prefixo sub- em português brasileiro: na palavra sublocar, por exemplo, resiste a ser silabificado com a base, *su.blo.car, diferentemente do que acontece na palavra não prefixada com sequência fonotática semelhante sublime, que se silabifica como su.bli.me. Esse fato é particularmente interessante, se observado da perspectiva dos possíveis expedientes de reparo à rejeição da língua a codas obstruintes. Uma alternativa é, naturalmente, afrouxar essa condição de coda para manter o alinhamento do prefixo com uma sílaba, sub.lo.car; outra, menos recorrente, é apagar a obstruinte, su.lo.car; a alternativa mais comum, porém, consiste em inserir uma vogal nesse contexto, tornando o prefixo dissilábico, su.b[ɪ].lo.car. A descrição adequada desse fenômeno fonológico, como se vê, não se sustentaria em bases puramente morfológicas ou puramente fonológicas. Em termos de arquitetura gramatical, precisamos dizer, então, que a fonologia acessa informação morfológica para processar a silabificação (e, consequentemente, o apagamento ou a epêntese). 

As teorias linguísticas lidam de diferentes formas com o que aqui estamos chamando de acesso. Isso porque nem todas concebem os objetos da morfologia e da fonologia igualmente e também porque veem distintamente a arquitetura e a função de cada módulo ou componente gramatical. O extremo dessa abordagem é o de se entender que morfofonologia pode, per se, constituir um componente ou um nível de análise, como propuseram algumas abordagens pré-gerativas, com o objetivo de dar conta de mapeamentos imperfeitos entre conteúdo e expressão linguística.

No gerativismo, o entendimento de que morfologia e fonologia constituíam subsistemas gramaticais, ou mesmo que podiam se relacionar entre si, nem sempre foi tácito.  No modelo padrão, não havia um componente morfológico, e a fonologia operava tão somente interpretando o output da sintaxe. Com o advento da Morfologia Lexical, mais adiante, admitem-se regras morfológicas operando antes da sintaxe. É, contudo, com um modelo conhecido como Fonologia e Morfologia Lexical que a fonologia interage diretamente com a morfologia num grande componente denominado léxico. Na Morfologia Distribuída, modelo surgido nos anos 1990, assume-se que um único sistema, responsável por gerar frases, gera também palavras. As entradas são abstratas, e o mapeamento entre traços morfológicos e sons é listado, tendo lugar apenas tardiamente, após as operações sintáticas. Não há, nesse sentido, componente morfológico ou fonológico no entendimento tradicional: a morfologia está distribuída na arquitetura do modelo e a fonologia é preponderantemente interpretativa na versão inicial dessa teoria. Na Teoria da Otimidade, modelo contemporâneo à Morfologia Distribuída, que se opõe aos demais por conceber o processamento gramatical como não serial, a ideia de modularidade é, por isso mesmo, redimensionada: restrições universais violáveis, respeitando um ranking próprio em cada língua, respondem pela escolha do candidato mais harmônico entre diferentes formas concorrentes de superfície. Nesse modelo, morfologia e fonologia estão presentes na representação de formas de input e podem se relacionar tanto na definição das restrições quanto na competição entre elas. Muitas outras teorias e subteorias não mencionadas aqui, menos ou mais afinadas ao formalismo gerativista, contribuíram importantemente para o debate sobre o mapeamento entre significado e representação sonora, todas conduzidas pelo entendimento de gramática como conhecimento internalizado.

A noção de competência linguística inclui a ideia de que os falantes são capazes de reconhecer fronteiras internas de constituintes e contextos de aplicação de processos e de formar novas palavras a partir dessas observações. É o que em geral se designa pelo termo produtividade. No âmbito da morfofonologia, por exemplo, podemos dizer que as vogais temáticas verbais do português, -a, -e, -i, são transparentes para os falantes, porque somos capazes de reconhecer e flexionar como verbos palavras inusuais (ex. obnubilava / imiscuiu-se / tangia) e mesmo pseudopalavras com esses elementos (ex. Se João gobedesse antes de dormir, teria um sono mais tranquilo). Entretanto, não podemos dizer que essas vogais participam igualmente da criação de novos verbos: há uma preferência generalizada por -a (ex. setar, dropar), -e emerge particularmente na criação de parassintéticos com a estrutura en+X+ecer (ex. emputecer, emburrecer) e -i parece não participar mais dessa concorrência. A descrição da produtividade morfofonológica depende da quantificação da frequência de exemplares em uso em uma língua, em termos de types e tokens, bem como da experimentação da percepção e da potencialidade de formação de novos itens.  

É preciso se ter clareza de que os objetos da morfologia ou da fonologia, enquanto entidades formais, são construtos teóricos, isto é, trata-se de categorizações propostas a partir de evidências indiretas. Em outras palavras, considerando-se que a fala é encadeada, o linguista observa processos que constituam argumentos para segmentá-la em unidades menores. Isso se aplica, por exemplo, ao conceito de morfema, fonema, traço gramatical ou morfológico e também ao conceito de palavra — essencial nos estudos morfofonológicos. Há diferentes abordagens do que se costuma chamar de palavra em Linguística. Dizemos, por exemplo, que uma palavra morfológica ou gramatical, além de se caracterizar como uma unidade de sentido, não admite interposição de outros elementos, figurando como um nó terminal de uma árvore sintática. Por exemplo, o composto borra-botas possui um sentido específico e não admite uma intercalação do tipo *borra-muitas-botas. Palavra fonológica, por outro lado, define-se como uma entidade portadora de proeminência, um acento principal. Se considerarmos o fato de que, apesar de vogais médias se neutralizarem em relação a abertura em sílabas pretônicas em português (ex. m[e]dicina ~ m[ɛ]dicina), isso não é possível com um composto como borra-botas (ex. b[ɔ]rra-b[ɔ]tas ~ *b[o]rra-b[ɔ]tas), somos levados a concluir que se trata de uma entidade com dois acentos primários. O não isomorfismo, neste caso, entre palavra morfológica e palavra fonológica justifica, por assim dizer, a proposição dessas entidades, sem ignorar as que com elas se relacionam, como objetos de investigação da morfofonologia.


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