Return to list
O estudo experimental da fala
Plínio A. Barbosa | Dep. Linguística, Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP

Quando se fala em "experimento", logo se pensa em uma atividade ligada a ciências como a Química e a Física, ou a etapas de trabalho que envolvem o uso de fármacos, a manipulação de átomos em aparelhos sofisticados como os aceleradores de partículas ou a realização de testes de produtos a serem usados por seres humanos, mesmo que no último caso tenhamos restrições éticas sobre o uso de animais para se chegar a esse fim.

Mas o que dizer de experimentos feitos com algo tão evanescente e aparentemente banal como a fala? Se todo experimento pressupõe materiais e alguma forma de manipulação desses, como identificar esses aspectos em um suposto estudo experimental da fala? Antes de mostrarmos como se pode fazer um estudo experimental da fala, precisamos entender melhor o que é um experimento, bem como o que se entende por "fala" e como esse objeto pode ser de alguma forma apreendido.

Um experimento é um conjunto de procedimentos que fazem parte de um ciclo cujo fim é testar uma ou mais hipóteses científicas. O ciclo experimental tem como ponto de partida um arcabouço teórico do qual procedem modelos e hipóteses sobre um determinado objeto de estudo. Essas hipóteses são testadas a partir de medidas obtidas a partir de um conjunto de dados que permitem dialogos com as medidas ou faixas de medidas preditas pelo arcabouço teórico. O experimento é, assim, um microcosmo que simula algum aspecto do objeto de estudo em sua situação natural.

Quanto ao objeto-fala, embora seja claro que é o resultado de um mecanismo de produção que culmina com a realização de enunciados inseridos numa situação comunicativa, esse objeto pode ser visto a partir de diferentes prismas teóricos ou disciplinas, o que determina diferentes procedimentos experimentais.

Assim, para a disciplina de Processamento de Sinais, um enunciado de fala é um sinal que expressa o valor da pressão sonora ao longo do tempo. Como sinal, ele pode ser submetido a diversos tipos de análises ou transformações matemáticas, como a espectrografia, a Transformada de Fourier, o cálculo de trechos periódicos vs. não periódicos, além de outros processamentos. A concepção da fala como sinal permitiu a invenção do espectrógrafo durante a Segunda Grande Guerra e a formalização da Teoria Fonte-Filtro com a publicação em 1960 do livro do engenheiro sueco Gunnar Fant, Acoustic Theory of Speech Production, que foi precedido de formulações do conceito de ressonância na produção das vogais por Chiba e Kajiyama (1941).

Entendido como produto da aplicação de um filtro a uma fonte sonora seguido do efeito da irradiação da energia sonora nos lábios, o sinal de fala pode se dar a vários tipos de experimento. A modificação ao longo do tempo de valores dos parâmetros que definem a forma do trato, mais especificamente a área de sua seção sagital, possibilita, por exemplo, que se possa testar os efeitos acústicos resultantes do alongamento da parte anterior do trato por conta de uma protrusão labial que abaixa frequência de formantes, as ressonâncias que se estabelecem no trato vocal enquanto falamos.

Entendido como formado por níveis variados de energia em diversas bandas de frequência numa determinada janela temporal, o sinal de fala permitiu o traçado dos primeiros espectrogramas nos anos 1940 que culminou com a construção do Pattern Playback pelo Haskins Labs em 1951. Esse aparelho permitia "tocar" um espectrograma com nível de Preto/Branco invertido e ouvir o enunciado que havia sido proferido. A modificação dos movimentos de formantes, especialmente às margens das vogais depois da consoante na sequência C-V, foi o marco dos primeiros experimentos de percepção da fala nos anos 1950. Esses experimentos permitiram descobrir o papel crucial dos movimentos de formantes à margem esquerda das vogais para a percepção do ponto de articulação das oclusivas.

Dentro das correntes mais tradicionais da Linguística, especialmente as de base saussureana e chomskyana, a fala é  um construto social não sujeito ao estudo, favorecendo assim o estudo abstrato e não experimental da língua. Basta para isso lembrar da oposição entre langue e parole em Saussure e entre competence e performance em Chomsky. Essa separação incentiva uma abordagem intuitiva da língua, da gramaticalidade e da agramaticalidade de suas formas, mas não investigadas através da fala de um falante específico. Afinal, em Saussure, a língua é a única forma digna de estudo e, em Chomsky, trabalha-se com o conceito de um falante ideal, espécie de falante típico dotada da competência linguística da língua em estudo e de uma Gramática Universal, presente em todas as línguas. Nessas correntes teóricas, incluindo as formas mais abstratas de representação fonológica, qualquer forma de experimentação era, até alguns anos atrás, irrelevante, pois o que contava era apenas a coerência teórica interna e a intuição do falante, mesmo que esse "falante" seja a mais das vezes um linguista nativo da língua estudada.

Guiada por uma preocupação com a relação entre língua e fala no que diz respeito aos sons, a Fonologia de Laboratório reconhece no início dos anos 1990 a necessidade de experimentação com dados de fala para avaliar teorias fonológicas, estabelecendo uma prática que encontra raízes nos trabalhos de Kenneth Stevens, Gunnar Fant e Ilse Lehiste. Hoje em dia há uma associação de Fonologia de Laboratório (Association of Laboratory Phonology) e um periódico, o Journal of Laboratory Phonology na área. Talvez uma crítica que se possa fazer a essa abordagem seja o fato de que as teorias fonológicas pouco se deixaram modificar ao cotejar os dados de fala, com algumas exceções, como a severa crítica a qualquer noção de "choque acentual" dos trabalhos de Vogel et al. (1995) e Shattuck-Hufnagel et al. (1994). Com base em experimentos com situações em que se configura uma aparente mudança de padrão acentual na palavra motivada por choque acentual, tal como proposto por Liberman e Prince (1977), como em thìrteen mén, os trabalhos de Fonologia de Laboratório mostraram que o que, de fato, existe é uma a tendência a se colocar uma proeminência secundária no início dos sintagmas, independentemente de qualquer motivação por contiguidade de acentos lexicais.

Experimentos da área de pesquisa de Produção da Fala envolvem medidas dos movimentos dos articuladores de fala por meio de técnicas como eletropalatografia, ressonância magnética funcional, ultrassonografia ou articulometria magnética (cf. Barbosa, em preparação). Nessa área de investigação, quando é possível gravar de forma síncrona o sinal acústico, estuda-se a relação articulatório-acústica para responder a diversas questões de pesquisa. Por exemplo, a forma como se realiza o "r" em inglês americano e em inglês britânico em contextos fonéticos diversos só foi resolvida com imagens reais do perfil da língua no trato vocal de falantes dessas variedades do inglês (Delattre e Freeman, 1968). Assim, para citar esse tipo de investigação em português brasileiro, descobrir qual é a configuração da língua no trato que se emprega quando se faz o "r" caipira exigirá experimentos de produção da fala que revelem se há retroflexão da lâmina ou recuo progressivo da língua para a região velar durante a realização da vogal precedente, por exemplo. Por isso não é correto atribuir o termo de "r" retroflexo a todo "r" que soa como "r" caipira, denominação esta que é mais prudente quando ainda não há estudos que atestem a sua realização articulatória.

Experimentos da área de pesquisa de Percepção da Fala envolvem formas de analisar respostas de ouvintes quando são solicitados a classificar ou avaliar contrastes sonoros ou quando sua atividade cerebral é monitorada enquanto escutam trechos de sons da fala para avaliar que regiões são responsáveis pelo processamento de aspectos segmentais e prosódicos da fala. A esse respeito, experimentos que medem a atividade do córtex cerebral através de técnica que avalia dados de eletroencefalografia foram capazes de revelar mudanças bruscas de atividade na região do córtex centroparietal em momentos de fronteiras no enunciado marcadas pela curva entoacional de frases do alemão (Steinhauer et al., 1999). Quanto a testes de percepção de trechos gravados, vários experimentos revelam nossa capacidade de perceber ou não determinados contrastes e quais parâmetros fonéticos seriam responsáveis por essa percepção ao serem experimentalmente manipulados pelo pesquisador. Por exemplo, a partir de que diferença de duração em uma vogal se perceberia que uma delas é mais longa do que outra? Experimentos nos anos 1970 demonstraram que a sensibilidade para discriminar durações quando são sons de fala é menor do que quando são outros tipos de sons e que essa diferença duracional precisa ser, na fala, de 25 a mais de 40 ms para que se perceba que os dois sons diferem em duração (cf. Lehiste, 1970).

Por necessitarem tão somente de gravações de trechos de fala e não de imagens de articuladores ou testes de percepção que podem ser custosos em termos de análise por conta do número de ouvintes que pode ser grande, os experimentos em Fonética Acústica são os mais comuns. Requerem estudos com contrastes paradigmáticos e sintagmáticos que vão desde o domínio de enunciados isolados até trechos extensos de fala, seja monológicos ou dialógicos, a depender do que se deseja investigar. Tanto aspectos segmentais, do tamanho do fonema, quanto prosódicos são passíveis de serem investigados, construindo o conhecimento do fonetismo das línguas através da experimentação. Por exemplo, através de um experimento que contrastou palavras em que não há mudança na abertura da vogal pré-tônica, como em "beleza", com palavras em que essa vogal pode mudar seu grau de abertura a depender da qualidade da tônica, como em "medalha" e "medida", foi possível mostrar que o falante de Belém do Pará tende a abaixar as vogais médio-altas quando a tônica é baixa, como em "médalha", mas não as alça quando a tônica é alta, como em "mêdida" (Souza e Barbosa, 2019). Isso só foi possível a partir da teoria acústica de Fant, que estabeleceu claramente a relação entre a frequência do primeiro formante (F1), a ressonância sonora de mais baixa frequência da vogal, e a abertura vocálica.

Estudar a fala dentro de um ciclo experimental é uma forma privilegiada de fazer avançar o conhecimento da relação entre o funcionamento de uma língua e suas formas de comunicação e, desde seu início, as chamadas ciências da fala têm amadurecido a partir da experimentação com esse objeto multifacetado que é a fala.


Bibliografia básica

BARBOSA, P.A. Ciências da Fala. São Paulo: Parábola, em preparação.

HAYWARD, K. Experimental phonetics: An introduction. Londres: Routledge, 2014.

LLISTERRI, J. B. Introducción a la fonética: el método experimental. Barcelona: Anthropos Editorial, 1991.

Bibliografia avançada

CHIBA, T.; KAJIYAMA, M. The vowel : its nature and structure. Tóquio : Tokyo-Kaiseikan, 1941.

DELATTRE, P.; FREEMAN, D. C. A dialect study of American r’s by x-ray motion picture. Linguistics, v. 6, n. 44, p. 29-68, 1968.

FANT, G. Acoustic theory of speech production. With calculations based on X-ray studies of Russian articulations. Haia: Mouton, [1960] 1970.

LEHISTE, I. Suprasegmentals. Cambridge, EUA: MIT Press, 1970.

LIBERMAN, M.; PRINCE, A. On stress and linguistic rhythm. Linguistic Inquiry, v. 8, n. 2, p. 249–336, 1977.

SHATTUCK-HUFNAGEL, S.; OSTENDORF, M.; ROSS, K. Stress shift and early pitch accent placement in lexical items in American English. Journal of Phonetics, v. 22, p. 357–388, 1994.

SOUZA, G. B.; BARBOSA, P. A. Harmonia Vocálica na Fala de Belém-PA: Uma Análise Acústica. Estudos Linguísticos e Literários, v. 63, p. 171-193, 2019.

STEINHAUER, K.; ALTER, K.; FRIEDERICI, A. D. Brain potentials indicate immediate use of prosodic cues in natural speech processing. Nature neuroscience, v. 2, n. 2, p. 191-196, 1999.

VOGEL, I.; BUNNELL, H. T.; HOSKINS, S. The phonology and phonetics of the rhythm rule. In: CONNELL, B.; ARVANITI, A. (Ed.). Phonology and Phonetic Evidence: Papers in Laboratory Phonology IV. Cambridge, Reino Unido: Cambridge University Press, 1995. p. 111–127.