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Prosódia das línguas de sinais
Cristiane C. Silva | Departamento de Línguas e Literaturas Estrangeiras, UFSC
André Nogueira Xavier | Coordenação do Curso de Letras Libras, UFPR

Versão em libras:


As línguas humanas se manifestam através de duas modalidades, a oro-auditiva e a gestual-visual (MEIER, 2012).  Apesar das diferenças de modalidade, as línguas de sinais compartilham com as línguas faladas características tidas como universais, entre elas, podemos mencionar, o deslocamento (a capacidade de nos referirmos a tempos e espaços diferentes daqueles do momento da enunciação), produtividade (capacidade de produzir e compreender enunciados que nunca foram produzidos antes), transmissão tradicional (línguas precisam ser ensinadas e aprendidas) e dupla articulação (as línguas operam em dois níveis: no primeiro elas se articulam em unidades significativas ou morfêmicas e no segundo se articulam em unidades menores distintivas, que formam os morfemas) (HOCKETT, 1960, 1978). Além dessas propriedades, as línguas de sinais se assemelham às línguas orais por apresentarem diferentes níveis organizacionais como o discursivo, morfo-sintático e o fonético-fonológico, que inclui a prosódia.

A prosódia se refere à maneira como dizemos alguma coisa e à sua relação com uma determinada função comunicativa (BARBOSA, 2019, p. 20). Ela abarca, por exemplo, a entoação e o ritmo. Nas línguas orais, a entoação pode ser definida como a alternância dos valores da frequência fundamental (f0) ao longo da cadeia da fala. É a percepção dessa alternância entre graves a agudos que possibilita a compreensão das diferentes modalidades de enunciados e das intenções dos falantes” (LUCENTE, 2021). Além disso, segundo Botinis et al. (2001, p. 267), as três funções principais da entoação estão relacionadas com proeminência, agrupamento e discurso. Aqui, discutiremos com mais detalhes as funções de proeminência e agrupamento. A proeminência é entendida como o destaque que se dá a uma unidade linguística em relação a outras (TERKEN, 1991; BARBOSA, 2010). Já o agrupamento, ou segmentação, pode ser definido como a divisão da cadeia falada em agrupamentos que, do ponto de vista perceptivo, identificaria fronteiras terminais ou continuativas, por exemplo (BARBOSA, 2019, p. 51).

O ritmo, por sua vez, pode ser definido como a junção da percepção de regularidade silábica com a percepção de alternância entre sílabas fortes e fracas (BARBOSA, 2019, p. 49). As funções prosódicas de proeminência e segmentação também podem ser transmitidas através do ritmo, dado que ambas estão relacionadas com a duração, medida a partir de unidades do tamanho da sílaba (BARBOSA, 2019). Por fim, também relacionada com o ritmo da fala, a taxa de elocução[1] é determinada pelo cálculo do número de unidades linguísticas (vogais, sílabas, palavras, etc.) pronunciadas (incluindo pausas silenciosas e preenchidas) em uma determinada unidade de tempo.

As línguas de sinais só passaram a ser reconhecidas como línguas naturais e, como tais, objeto de estudo da linguística a partir do trabalho seminal de William Stokoe (1960). Dada sua relativa juventude em comparação à linguística das línguas faladas, a linguística das línguas sinalizadas não conta ainda com uma vasta tradição de pesquisas e um robusto conhecimento em todos os domínios desse campo, dentre eles a prosódia (SANDLER, 2012). Diante disso, nas seções seguintes, apresentaremos alguns dos poucos trabalhos que tratam de aspectos prosódicos das línguas sinalizadas, especificamente relacionados à entoação, à proeminência e ao ritmo.

Entoação nas línguas de sinais

De acordo com Sandler (2012), desde os primeiros estudos sobre a prosódia das línguas sinalizadas, as expressões faciais, precisamente movimentos de sobrancelhas, vêm sendo associados à entoação. A motivação principal para isso é que essas articulações tendem a co-ocorrer e a se estender durante a produção de uma sequência de sinais manuais. Porém a autora defende que o sistema prosódico das línguas de sinais não é exclusivamente não manual. Para ela, a prosódia das línguas de sinais envolve também aspectos manuais: o ritmo é expresso primariamente pelas mãos; a entoação primariamente pela face; e a proeminência tanto pelas mãos quanto por meio de inclinações do corpo. 

No mesmo estudo, Sandler (2012) menciona que na língua de sinais israelense, assim como em outras línguas sinalizadas, as sobrancelhas indicam modalidade de enunciado. Dessa forma, as sobrancelhas franzidas marcam perguntas-qu (Figura 1a), enquanto as sobrancelhas levantadas marcam perguntas sim-não (Figura 1b). Além disso, a autora reporta que na língua de sinais israelense o semifechamento dos olhos marca conhecimento compartilhado (Figura 1c). Segundo a autora, esse último recurso não é tão frequente em outras línguas sinalizadas. 

Figura 1. Expressões faciais prosódicas na língua de sinais israelense que marcam (a) perguntas-qu, (b) perguntas-sim-não e (c) informação compartilhada

     

 Fonte: Sandler (2012, p. 64)          

Além disso, Sandler (2012) aponta que, assim como ocorre nas línguas faladas, é possível também combinar diferentes aspectos prosódicos para expressar significados mais complexos. Por exemplo, para expressar perguntas sobre informações compartilhadas como em “Você viu aquele filme sobre o qual falamos?”, o sinalizante pode levantar as suas sobrancelhas e fechar parcialmente seus olhos simultaneamente. Para ilustrar isso, reproduzimos na Figura 2 o dado da língua de sinais israelense reportado por Sandler (2012). Nesse exemplo, a sinalizante combina sobrancelhas levantadas, que marcam orações condicionais, com os olhos semifechados, que marcam conhecimento compartilhado, para expressar contrafactualidade.

Figura 2. Oração condicional em língua de sinais israelense

   

‘Se o goleiro tivesse pegado a bola eles teriam ganhado o jogo’.
Fonte: Sandler (2012, p. 65, tradução nossa)

Sandler (2012) ainda chama a atenção para o fato de que as sobrancelhas franzidas e olhos semifechados co-ocorrem com a produção dos sinais manuais da oração condicional e que estas mudam sua configuração, assumindo uma disposição neutra durante a produção da oração principal. Isso pode ser observado na Figura 3 em que temos o último sinal da oração condicional seguido do primeiro sinal da oração principal.

Figura 3. Comparação entre as configurações faciais observadas durante a realização da oração condicional (a) e da oração consequente (b)

                         

Fonte: Sandler (2012, p. 66) 

Dachkovsky e Sandler (2009) reportam que sobrancelhas levantadas expressam significado geral de dependência ou continuação semelhantemente ao tom alto nas línguas faladas[2]. Decorre daí o seu uso em perguntas, uma vez que estas pressupõem uma continuação por meio da resposta do interlocutor. O mesmo pode ser dito em relação ao seu uso em orações condicionais, as quais devem ser seguidas pela oração consequente.

Proeminência nas línguas de sinais

A expressão de proeminência na ASL foi investigada por Wilbur e Zelaznik (1997). Utilizando um sistema de análise de movimento 3D, os autores estudaram três parâmetros físicos envolvidos na articulação dos sinais: duração (ms), velocidade de picos (cm/s) e o deslocamento (cm) em quatro condições: não final (acentuada e não acentuada) e final (acentuada e não acentuada). Como resultado, eles reportam que houve um aumento significativo da duração em sinais produzidos em posição final, o que os autores atribuem ao fenômeno do alongamento final, amplamente atestado nas línguas orais. Já em relação à velocidade de pico, Wilbur e Zelaznik (1997) consideram que ela desempenharia o papel de marcador primário da proeminência, funcionando como um correlato da frequência fundamental em algumas línguas orais[3]. Por fim, o deslocamento, segundo os autores, pode ser afetado tanto pela proeminência quanto pela posição. Os autores reportam que sinais proeminentes apresentam maior deslocamento que os sinais não proeminentes, independentemente de sua posição. Já sinais finais apresentam maior deslocamento do que sinais não finais independentemente de sua proeminência, o que em nossa interpretação desempenharia a função de segmentação. 

Os primeiros estudos sobre a percepção da proeminência na ASL foram realizados por Covington (1973), Friedman (1976) e Wilbur e Schick (1987) e consistiram na solicitação a sinalizantes que assistissem a fragmentos de sinalização em vídeo e que circulassem na transcrição os sinais mais proeminentes[4]. Allen, Wilbur, Schick (1991) conduziram um estudo com o mesmo objetivo, mas dessa vez solicitaram aos sinalizantes que batessem com uma vara de metal em um prato de cobre seguindo o ritmo da sinalização. Assim, cada batida enviava um sinal para um gravador de fita FM, que também gravava um sinal de áudio indicando o começo de cada batida de maneira que ela pudesse ser localizada com respeito ao que o sinalizante estava vendo. Esses estudos contribuíram com a identificação de sinais proeminentes em ASL.

Ritmo nas línguas de sinais 

Relacionados ao ritmo em língua de sinais, há ainda poucos trabalhos. Entre os estudos existentes podemos citar o de Grosjean e Lane (1977) sobre pausas na Língua de Sinais Americana, ASL (do inglês American Sign Language). Esse estudo mostrou, semelhantemente ao que Grosjean e Colin (1978) reportam, com base na ASL e no inglês, que a duração das pausas numa língua sinalizada varia semelhantemente à duração das pausas das línguas faladas em função do tipo de fronteira das unidades linguísticas. Entre sentenças, fronteiras fortes, as pausas são mais longas do que no interior de um sintagma, fronteira fraca. Além desse, há também o estudo de Wilbur (1994) sobre a piscada de olhos. Segundo a autora, há dois tipos de piscadas linguisticamente relevantes: as involuntárias periódicas, realizadas primariamente para lubrificar os olhos, e as voluntárias, caracterizadas como mais longas e demoradas. As primeiras ocorrem em grande frequência no final de frases entoacionais já as segundas co-ocorrem com um sinal manual para marcar ênfase, asserção ou stress

Além disso, o trabalho de Grosjean (1979) também analisou a taxa de articulação, a duração e a frequência das pausas produzidas por sinalizantes de ASL e falantes de inglês. Esse estudo revelou uma diferença entre os dois tipos de modalidade linguística. Quando sinalizantes e falantes são solicitados a aumentar a sua taxa de elocução, eles usam estratégias diferentes. Enquanto os falantes de inglês diminuíram, principalmente, o número de pausas, os sinalizantes diminuíram tanto o número de pausas quanto a duração delas. Tal fato é explicado pelo autor como resultante do acoplamento da fala à respiração. Em outras palavras, ainda que reduzam o número de pausas com o aumento da taxa de elocução, os falantes não podem reduzir drasticamente a sua duração, já que utilizam as pausas também para respirar.


Referências

ALLEN, G. D.; WILBUR, R. B.; SCHICK, B. S. Aspects of rhythm in ASL. Sign Language Studies, 72, 297–320, 1991.

BARBOSA, P. A. Prosódia. 1. ed. São Paulo: Parábola, 2019.

BARBOSA, P. A. Intonation modeling in cross-linguistic research. In: ARMSTRONG, M. E.; HENRIKSEN, N.; VANRELL, M. M. (Eds.), Intonational Grammar in Ibero-Romance: Approaches across linguistic subfields. Issues in Hispanic and Lusophone Linguistics, Philadelphia: John Benjamins, 2016, p. 115-134.

BARBOSA, P. Automatic duration-related salience detection in Brazilian Portuguese read and spontaneous speech. In: SPEECH PROSODY, 2010, Chicago, Proceedings... Chicago, 2010.

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COVINGTON, V. Features of stress in American Sign Language. Sign Language Studies, 2, 39–58, 1973.

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SANDLER, W. Visual Prosody. In: PFAU, R.; STEINBACH, M.; WOLL, B. (Org.). Sign Language: An International Handbook, Berlin: Mouton de Gruyter, 2012, p. 55-76. 

DACHKOVSKY, S.; SANDLER, W. 2009 Visual Intonation in the Prosody of a Sign Language. In: Language and Speech 52(2/3), 287314.

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GROSJEAN, F. (1979). A study of timing in a manual and a spoken language: American Sign Language and English. Journal of Psycholinguistic Research, 8, 379–405.

GROSJEAN, F.; COLLINS, M. Breathing, pausing, and reading. Phonetica, 36, 98–114, 1978. 

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HOCKETT, C. F. In Search of Jove’s Brow. American Speech, v. 53, n. 4, p. 243–313, 1978.

HOCKETT,. C. F. The Origin of Speech. Scientific American, v. 203, p. 88–111, 1960.

LUCENTE, L. 2021. Entoação. In: Verbetes LBASS. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/lbass/.

MEIER, R. P. Language and modality. In: PFAU, Rolan; STEINBACH, Markus; WOLL, Bencie (Orgs.). Sign Language: An International Handbook, Berlin, Boston: Berlin: De Gruyter Mouton, 2012, p. 574-601.

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STOKOE, W. Sign Language Structure: An Outline of the Visual Communication Systems of the American Deaf”. Studies in Linguistics: Occasional Papers, 8, Washington, DC: Gallaudet University Press, 1960.

TERKEN, J. Fundamental frequency and perceived prominence of accented syllables. J. Acoust. Soc. Am. 89(4), 1991.

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WILBUR, R. B. Eyeblinks and ASL phrase structure. Sign Language Studies, 84, 221–240, 1994.

Sugestões de leitura sobre prosódia da libras 

CASTRO, N. P. de. Prosódia em ASL e libras: análise comparativa de aspectos visuais.  255 f. Tese de Doutorado em Estudos da Tradução, Centro de Comunicação e Expressão - Universidade Federal de Santa Catarina, 2019. Disponível em: http://tese.nelsonpimenta.com.br/. Acesso: 08 Set de 2021.

LEITE, T. A. 2008. A segmentação da língua de sinais brasileira (libras): um estudo lingüístico descritivo a partir da conversação espontânea entre surdos. 2008. 280 f. Tese de doutorado em Lingüística. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) – USP, 2008.

Notas 

[1] Além do cálculo da taxa de elocução, muitos estudos realizam também o cálculo da taxa de articulação que é determinada pelo número de unidades linguísticas (excluídas as pausas) em uma determinada unidade de tempo.

[2] Em muitas línguas são usados tons descendentes para indicar terminalidade enquanto os tons ascendentes são usados para indicar não terminalidade ou continuidade. O estudo de Barbosa (2016) analisa o papel da entoação na marcação de fronteira em Português Brasileiro e Português Europeu, já o estudo de Donzel e Beinfum (2000) analisa o holandês, por exemplo.

[3] Outros parâmetros acústicos além da f0 podem estar relacionados com a marcação de proeminência nas línguas orais como a duração e a intensidade.

[4] Procedimento semelhante tem sido adotado na identificação de proeminência e fronteira prosódica em línguas orais (MO, COLE, LEE, 2008).