A “Fonologia prosódica”, do inglês “Prosodic Phonology”, floresceu na década de 1980, como uma teoria fonológica gerativista que se caracterizou, ao lado da Fonologia Autossegmental, Fonologia Lexical e Fonologia Métrica, como um modelo não linear de análise de fala. Esses modelos comungam da teoria da Fonologia Gerativa Padrão, apresentada na clássica obra The Sound Pattern of English (SPE), escrita por Chomsky e Halle (1968), a ideia de que há um componente fonológico definido como parte da gramática. No entanto, esses modelos não lineares divergem da concepção gerativa do SPE segundo a qual a fonologia é caracterizada por uma organização linear de segmentos e um conjunto de regras fonológicas cujos domínios de aplicação são definidos por fronteiras das estruturas de constituintes morfossintáticos. Ainda na Fonologia Gerativa Padrão, o componente fonológico estava limitado à interface com o componente sintático na medida em que o output do componente sintático constituiria o input para o componente fonológico sujeito a regras de reajustes. Essa concepção gerou muitos ganhos em relação à concepção estruturalista da fonologia, mas não se mostrou capaz de capturar a complexidade de fenômenos que compreendem relações de natureza suprassegmental, como entre acentos ou entre tons, por exemplo. Alternativamente, os modelos não lineares concebem o componente fonológico formado por conjunto de subsistemas que interagem entre si e que são governados por princípios de natureza própria. A essa mudança de concepção da fonologia subjaz outra mudança importante ocorrida na concepção da sintaxe, no arcabouço da teoria gerativista: a sintaxe deixa de ser um sistema de regras para ser concebida por um conjunto de princípios universais na aplicação de processos gramaticais. Estava em curso, portanto, uma mudança na concepção de gramática no âmbito de uma abordagem formal das línguas.
Situado o marco inicial da Fonologia Prosódica, teoria que tem como desafio caracterizar o subsistema prosódico das línguas, passamos a explicitar as principais asserções defendidas por Nespor e Vogel (1986) e Selkik (1984), quando essas autoras lançaram suas obras, referências principais para os estudiosos da prosódia sob essa perspectiva teórico-metodológica.
A primeira asserção importante é: a Fonologia Prosódica é uma teoria sobre domínios segundo a qual a representação mental da fala é delimitada em blocos hierarquicamente organizados (Nespor e Vogel, 2007, p. 1). Esses blocos que ocorrem na fala são os constituintes prosódicos da gramática, os quais são identificados por diferentes evidências. Essas evidências podem ser processos que alteram os segmentos e mudanças fonéticas específicas que ocorrem em cada domínio, como mudança de traço segmental, alongamento de segmentos ou sílabas, entre outros. A caracterização dessas evidências, vale observar, alcança ganho explicativo (sobre o qual trataremos mais à frente) em comparação à abordagem linear que lançava mão de marcas de fronteira interna ou externa à palavra na caracterização dos processos segmentais. Outra observação diz respeito ao fato de que o leque de evidências dos constituintes prosódicos se amplia no desenvolvimento de pesquisas nas diferentes línguas. A essas evidências, retornaremos com exemplos do Português Brasileiro (PB).
De maneira sucinta, é fundamental ter clareza que sustentar a asserção central da teoria implica enfrentar, na perspectiva de Selkirk (1986), as seguintes questões: 1) como se dá a organização dos constituintes prosódicos e qual é a natureza da representação fonológica desses constituintes? 2) como se dá a relação entre estrutura sintática e representação fonológica? A pesquisadora argumenta que os constituintes prosódicos são hierarquicamente organizados e que regras fonológicas têm domínio de aplicação definido pela estrutura prosódica, não sendo essa estrutura isomórfica à estrutura sintática. Essa é a premissa comum aos modelos da Fonologia Prosódica, caracterizando-os como um arcabouço teórico que investiga a organização prosódica dos enunciados. A segunda questão lança luz à problematização sobre quais propriedades da estrutura sintática o componente fonológico tem acesso. Em outras palavras, a questão é: como ocorre o mapeamento entre sintaxe e fonologia? Para Selkirk (1984, 1986), esse mapeamento requer o acesso apenas à informação de fronteira direita ou esquerda dos constituintes sintáticos assim designados na hierarquia da teoria X-barra (Chomsky, 1970). Esse é o modelo End-based da Fonologia Prosódica. A justificativa para essa abordagem ancora-se no processamento on-line de sentenças: acessar a fronteira de um constituinte prosódico particular significa encontrar a fronteira (direita ou esquerda) de um constituinte sintático de um nível particular da hierarquia sintática, uma informação relevante para acessar a estrutura sintática de uma sentença.
Essa concepção do mapeamento sintaxe-fonologia difere daquela defendida por Nespor e Vogel (2007, p. 5) segundo a qual esse mapeamento deve fazer referência não apenas a fronteiras morfossintáticas da estrutura sintática de superfície, mas também a outras noções sintáticas, como as relações de complementaridade e ramificação dos constituintes, e semânticas, como o estatuto informacional. As regras de mapeamento, nesse modelo (Nespor e Vogel, 2007, p. 302), asseguram a interface entre fonologia e os demais componentes da gramática, uma vez que os algoritmos de formação dos constituintes prosódicos fazem uso de diferentes tipos de noções gramaticais para cada nível da hierarquia prosódica. Por exemplo, o sintagma fonológico (phonological phrase) é um constituinte gerado a partir do acesso à informação sobre a relação de complementaridade entre os sintagmas de uma sentença e a ramificação desses elementos; já o sintagma entoacional (também denominado frase entoacional, do inglês “intonational frase”) é formado a partir de informações de que todos os constituintes sintáticos devem pertencer à mesma sentença raiz, consideradas condições de natureza semântica, como a atribuição de proeminência ou a focalização. Esse é o modelo Relation-based.
Essas abordagens contribuíram para ampliar o reconhecimento e a caracterização de fenômenos fonológicos nas diferentes línguas e, ao longo dos anos, acumulou considerável conjunto de evidências de sua robustez. Sobre o Português Brasileiro, há pesquisas desenvolvidas segundo as premissas da Fonologia Prosódica de modo que é possível reconhecer evidências segmentais, rítmicas e entoacionais da estrutura prosódica. Exemplificamos cada tipo de evidência a seguir.
Exemplo de evidência segmental de constituinte prosódico é a elisão de vogal /a/, em (1), quando comparada com a degeminação (em 2) e a ditongação (em 3), todas regras de sândi vocálico. A elisão é uma regra segmental que se particulariza, em relação à degeminação e ditongação, por ser pós-lexical, sendo sua aplicação no domínio do grupo clítico, segundo Bisol (2005). Essa autora demonstra que a elisão não se aplica dentro da palavra prosódica (1.a), mas na juntura entre clítico e hospedeiro (1.b) e entre palavras prosódicas (1c), quando se configura o sintagma fonológico (ou frase fonológica). Nota-se, pois, o ganho na descrição de uma regra segmental ao ser caracterizado o domínio prosódico de sua aplicação, o qual, por sua vez, não é isomórfico ao vocábulo morfológico.
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a. Palavra Prosódica |
b. Grupo Clítico |
c. Sintagma Fonológico |
(1) |
baunilha, *bunilha |
para operar > par[o]perar |
casa escura > ca[zes]cura |
(2) |
cooperar > [co]perar |
na avenida > navenida |
fada amiga > fa[da]miga |
(3) |
diabo > [dja]bo |
de arte > [djar]te |
verde amarelo > ver[dja]marelo |
Fonte: Adaptado de Bisol (2005, p. 172)
A regra de resolução de choque de acentos é exemplo de evidência rítmica da estrutura prosódica, pois essa regra se aplica no domínio do sintagma fonológico (PPh) em PB, como argumenta Abousah (1997). Em (4.1), há o choque de acentos (sílabas em negrito) entre “café” e “quente”, palavras prosódicas (PW) que formam um sintagma fonológico. A resolução do choque pode se dar pela retração do acento de “café”, como indicado em (4.2). Em (5.1), também há um choque de acentos entre “café” e “queima”, mas, nesse caso, não há mudança do acento de “café”, porque essa palavra prosódica não pertence ao mesmo sintagma fonológico de “queima”.
(4.1) [[café]PW [quente]PW]PPh [queima a boca]PPh |
(4.2) café quente > café quente |
(5.1) [[café]PW]PPh [[queima]PW]PPh |
(5.2) café queima, *café queima |
Por fim, a evidência entoacional da estrutura prosódica é exemplificada a partir da sentença “Assisti ao jornal hoje”, analisada por Gravina e Fernandes-Svartman (2013). Essa sentença é sintaticamente ambígua. Quando “jornal hoje” é o nome de telejornal diariamente transmitido por um canal de televisão brasileira, constitui-se em um sintagma nominal (SN) e, em consequência, um sintagma fonológico, como explicitado em (6.1). Nesse caso, houve um evento tonal H+L* (tom descendente: alto [High] + baixo [Low]) associado à sílaba proeminente do sintagma fonológico, ou seja, a sílaba tônica de “hoje”. Soma-se que as autoras detectaram a retração do acento em “jornal” em razão do choque de acentos ocorrer dentro do sintagma. Quando “jornal” e “hoje” são, respectivamente, substantivo e advérbio, identificam-se os sintagmas nominal (SN) e adverbial (SAdv), sendo cada um deles um sintagma fonológico, como indicado em (6.2). Nesse caso, as autoras encontraram o evento tonal L*+H (tom ascendente: baixo [Low] + alto [High]) associado à sílaba proeminente do sintagma “jornal” e o evento tonal H+L* (tom descendente: alto [High] + baixo [Low]) associado à sílaba proeminente do sintagma “hoje”. Acrescenta-se que não houve retração de acento em “jornal”, pois não se configura um choque de acentos entre “jornal” e “hoje” por pertencerem a sintagmas fonológicos distintos. Da comparação entre (6.1) e (6.2), constata-se que o sintagma fonológico é evidenciado pela presença de evento tonal associado à sílaba proeminente.
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a. Estrutura sintática |
b. Estrutura prosódica |
c. Interpretação |
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(6.1) |
[jornal hoje]SN |
[jornal hoje]PPh |
“nome de telejornal” |
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H + L* |
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(6.2) |
[jornal]SN [hoje]SAdv |
[jornal]PPh |
[hoje]PPh |
“jornal do dia” |
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L*+H |
H+L* |
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Fonte: Adaptado de Gravina e Fernandes-Svartman (2013, p. 649).
Em resumo, encontra-se consolidada a noção de que a configuração prosódica tem papel crucial na organização de estruturas segmentais, acentuais e entoacionais de representações fonológicas das sentenças e suas implementações fonéticas. Também se alcançou o consenso entre os investigadores que a estrutura prosódica é constituída a partir de estruturas sintática e informacional, mas não necessariamente corresponde a essas estruturas. Não há consenso, porém, sobre o tipo de informação sintática a que o subcomponente prosódico tem acesso. Sobre essa investigação, que segue em aberto, Selkirk (2000), sob o arcabouço da Teoria da Otimalidade (ou Otimidade), inicialmente formulada por Prince e Smolensky (1993), explicita que se faz necessário à teoria fonológica reconhecer a diversidade de restrições na configuração prosódica dos enunciados e, ainda, explicitar o modo pelo qual essas restrições interagem. Este é o desafio teórico sobre o qual se debruçam os interessados em caracterizar a estrutura prosódica das línguas mais recentemente: quais aspectos da estrutura sintática e da estrutura informacional são relevantes para a configuração prosódica? De que modo se dá a interface entre essas estruturas? Em outras palavras: como se dá o mapeamento dos enunciados em estruturas prosódicas?
Para você que deseja começar o estudo sobre Fonologia Prosódica, seguem algumas referências iniciais; mas se você quiser aprofundar sua formação, vale mergulhar em artigos que explicitam os desafios a serem enfrentados. Boa leitura!
Referências
ABOUSALH, E. F. Resolução de choques de acento no português brasileiro: elementos para uma reflexão sobre interface sintaxe-fonologia. 1997. 157 f. Dissertação (Mestrado em linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1997.
CHOMSKY, N.; HALLE, M. The Sound Pattern of English, New York: Harper and Row, 1968.
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NESPOR, M.; VOGEL, I. Prosodic phonology. Foris: Dordrecht. 1986.
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SELKIRK, E. Phonology and sintax. The relation between sound and structure. Cambridge: The MIT Press, 1984.
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SELKIRK, E. The interaction of constraints on prosodic phrasing. In: HORNE, M. Prosody: theory and experiment, Kluwer Academic Publischers: The Netherlands, 2000, p. 231-261.
BISOL, L. O clítico e seu hospedeiro. Letras de Hoje, Porto Alegre, v.40, n.3, p. 163-184, 2005.
GRAVINA, A. P.; FERNANDES-SVARTMAN, F. Interface sintaxe-fonologia: desambiguação pela estrutura prosódica no Português Brasileiro. Alfa, São Paulo, v.57 n.2, p. 639-668, 2013.
PRINCE, A.; SMOLENSKY, P. Optimality Theory: constraint interaction in generative gramar. New Brunswick: Rutgers University: University of ColoradoBoulder, 1993.
Referências introdutórias
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TENANI, L. Fonologia Prosódica. In: DA HORA, D.; MATZENAUER, C. (Org.) Fonologia, fonologias: uma introdução. Contexto: São Paulo, 2017, p. 109-123.
Referências para aprofundamento
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FROTA, S; CRUZ, M. FERNANDES-SVARTMAN, F. COLLISCHONN, G. FONSECA, A.; SERRA, C; OLIVEIRA, P. VIGÁRIO, M. Intonational variation in Portuguese: European and Brazilian varieties. In: FROTA, S.; PRIETO, P. (Org.). Intonational in Romance. Oxford: Oxford University Press, 2015, p. 235-283.
ITO, J.; MASTER, A. Match as Syntax-Prosody Max/Dep: Prosodic enclisis in English. English Linguistics. English Linguistics Online, 36, p. 1-18, 2019.
SÂNDALO, F.; TRUNKENBRODT, H. Some notes on phonological phrasing in Brazilian Portuguese. The MIT Working Paper, Cambridge, v.42, p. 285-310, 2002.
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TRUCKENBRODT, H. The syntax-phonology interface. In: DE LACY, P. (ed.) The Cambridge Handbook of Phonology. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 435-456.