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Vocalizações dos animais
Patrícia Ferreira Monticelli | FFCLRP/USP
Rogério Grassetto Teixeira da Cunha | UNIFAL

Vocalização é o termo que usamos na Bioacústica para os sinais sonoros de comunicação produzidos por tratos vocais por meio de vibrações de estruturas específicas, o que, portanto, inclui a voz humana. Capivaras e porquinhos-da-índia, por exemplo, emitem choros que se parecem com os humanos e os filhotes assobiam quando separados da mãe (algo comum, na natureza). Os macacos bugio e sauá, o lobo-guará e muitos felinos, produzem sons tão intensos, que servem à comunicação à longa distância (em inglês, essas vocalizações são chamadas de loud calls).

A definição de vocalização exclui a produção de sons não vocais com função comunicativa, como batidas de dentes, rufar de asas, estalar de língua, assobiar com os lábios, diferentes formas de percussão corporal (como sons produzidos em beatboxing), além de todos os sons produzidos por invertebrados e peixes[1]. Os sons produzidos dessas formas não devem ser chamados de vocalizações (embora, muitas vezes, a literatura adote o termo para os sons de peixes); em alguns destes casos pode-se usar o termo chamado (call, em inglês) ou chamada, dependendo do autor. 

O trato vocal é o sistema de produção de som pela expulsão de ar dos pulmões e estruturas associadas à boca, passando por um tubo com membranas vibratórias (veja em detalhes em TSUJI, 2021). Entre os mamíferos, a vocalização melhor compreendida em termos de estrutura e forma de produção é a nossa voz, como descreve Fitch (2006). A vocalização humana (ou voz), constitui-se tanto de sons com conteúdo verbal (a fala e o canto verbalizado), como não-verbal (e.g., gargalhar, chorar, gritar, dentre outros).

Estudando a evolução da comunicação acústica em vertebrados, Tecumseh Fitch[2] notou que o sistema de produção vocal (SPV) humano é muito semelhante ao de outros mamíferos, com pregas vocais dispostas em um tubo fonador (a laringe), e que pode ser compreendido à luz das teorias fonético-acústicas, como a teoria fonte/filtro de Gunnar Fant (FANT, 1960; FITCH, 2006). O SPV manteve-se praticamente inalterado ao longo da história evolutiva dos mamíferos, em termos de estrutura geral e em função e, portanto, não é uma particularidade humana (FITCH e REBY, 2001; sobre a história evolutiva da laringe, veja BOWLING et al, 2020; GASCO e CUNHA, 2021). Anfíbios, répteis, aves e mamíferos (i.e., os tetrápodes) têm em comum três componentes envolvidos na produção vocal: um sistema respiratório com pulmões, uma laringe com um sistema de fechamento rápido (a glote) da via de acesso aos pulmões (que na maioria dos mamíferos, anfíbios e répteis adquiriu a função secundária de produzir som) e um trato vocal superior (as cavidades que estão acima da laringe, portanto, supralaríngeas; FITCH, 2006; TSUJI, 2021). Segundo a teoria fonte/filtro, o som produzido na laringe (fonte) é modificado de diversas formas pelo trato vocal superior (filtro), antes de ser emitido para o ambiente pela boca ou bico (FANT, 1960; SUTHERS et al, 2016). As aves e os mamíferos marinhos (cetáceos: baleias e golfinhos) desenvolveram novos mecanismos de produção vocal; nas aves (com exceção dos urubus), a membrana vibratória (siringe) fica abaixo da traqueia e não na laringe; além disso, por avançar para a bifurcação dos brônquios, ela é bipartida e cada parte pode vibrar de forma independente, gerando vocalizações que podem combinam sons de duas fontes (SUTHERS, 1990). As vocalizações compostas por duas fontes sonoras (com duas frequências fundamentais distintas, F0 e G0), são chamadas de vocalizações bifonais (do inglês, biphonic vocalization; VOLODIN e VOLODINA, 2002). Nos cetáceos odontocetos (golfinhos, orcas e cachalote), além dos sons produzidos pela laringe, eles também produzem sons por estruturas associadas às passagens nasais, com os chamados lábios fônicos (phonic lips ou monkey lips em inglês) (TYACK e MILLER, 2002). Estes sons são usados tanto para ecolocalização quanto para comunicação.

Comunicação acústica e Bioacústica

Usa-se o termo comunicação acústica para designar o comportamento de comunicar-se por sons, sejam eles vocais ou não-vocais. O verbete bioacústica, fortemente associado à vocalização animal, pode significar simplesmente o uso do som (acústica) em medicina e saúde (por exemplo, em terapias psico-neurais nas quais o som serve como estimulador do sistema nervoso), embora tal uso do termo seja bastante restrito e raro. Mais comumente, bioacústica é o estudo do processo de comunicação por som em animais, seja por meio de vocalizações ou de chamados não-vocais. Os especialistas em bioacústica são chamados em inglês de bioacusticians, termo sem correspondente na língua portuguesa. No I Congresso Brasileiro de Bioacústica (CBB; https://sbba.com.br/), realizado pela Sociedade Brasileira de Bioacústica (SBB), em dezembro de 2021, a sua presidente Maria Luiza da Silva (UFPA) adotou o termo bioacusta (masculino e feminino) para designar os estudiosos da área, de forma que pode-se ser um bioacusta ou uma bioacusta. Alternativamente, podemos adotar o termo bioacusticista (Plinio Barbosa, com. pess.). 

Os sinais sonoros de comunicação foram selecionadas ao longo do tempo evolutivo por conferirem vantagem ao emissor (e, em alguns casos, também ao receptor) ao atuar como forma de comunicação entre membros de uma espécie (HAUSER, 1996; MCGREGOR, 2005) ou entre espécies distintas. Os sinais de comunicação acústica, como os sinais produzidos por outros canais (como o visual e o olfativo), surgiram possivelmente por um processo de ritualização (LORENZ, 1966) durante o qual foram sendo elaborados no sentido de aumentar sua efetividade na modificação do comportamento de outros (veja exemplos em ZAHAVI e ZAHAVI, 1999). Além do receptor, outras fontes atuam como forças seletivas na modificação dos sinais de comunicação, por influenciar o processo de transmissão (HAUSER, 1996). Por exemplo, muitas espécies desenvolveram adaptações que favoreceram a comunicação, como modificações anatômicas para transmissão a longas distâncias (e.g., o osso hióide muito aumentado do macaco bugio). Em outros casos, receptores “ilegítimos” (os interceptadores), como predadores ou parasitas, geram uma pressão seletiva que pode levar a mudanças na estrutura dos sinais, no sentido de dificultar a recepção dos sinais por interceptadores.

A história evolutiva particular das espécies e de cada um dos seus sinais produziu a variedade de sons produzidos na natureza. Há, contudo, estruturas gerais que permitem a classificação das vocalizações em categorias como assobio, choro, grito, rosnado, rugido, ganido, trinado e muitas outras. A nomenclatura varia muito entre os pesquisadores, especialmente entre os de grupos taxonômicos diferentes (artrópodes, herpetofauna, peixes, aves e mamíferos), até mesmo entre primatólogos e outros mastozoólogos (os que estudam mamíferos), e também entre as diferentes ciências que estudam os sons da linguagem humana. Dificuldade particular surge na nomeação de elementos dentro de emissões vocais mais longas e complexas; são usados de forma discordante entre as áreas termos como unidade, nota, sílaba, frase, canto, o que dificulta a comparação entre as descrições de vocalizações.

É interessante notar que a diversidade de vocalizações produzidas pelos animais é muito mais ampla do que a percepção humana. Por exemplo, em termos de frequência acústica, há espécies que produzem infrassom, definido como aquele que está abaixo da nossa faixa de percepção (< 20 Hz) e outras que produzem ultrassom (acima do nosso alcance auditivo de  20 kHz).

Os fenômenos não-lineares das vocalizações

Fenômenos vocais não lineares (FNLs), em inglês nonlinear phenomena (NLPs), fazem parte de ao menos um roll de vocalizações de animais humanos (ANIKIN et al, 2018) e não-humanos (WILDEN et al, 1998), como gemidos, rugidos e gritos (em inglês: moans, roars, screams), entre outros. Sua presença muitas vezes dá às vocalizações uma qualidade sonora áspera, às vezes irritante. Nas emissões chamadas tonais ou harmônicas, as pregas vocais são normalmente vibradas de uma forma rítmica, produzida pela simetria na atividade dos músculos que as controlam, como descrevem Fitch e colaboradores (2002); quando esse ritmo é quebrado aparecem momentos ou fases de perturbações na emissão sonora que desviam a produção tonal regular. Estes desvios são agrupados nas seguintes categorias: saltos de frequência (frequency jumps), que são instâncias nas quais a frequência fundamental da vocalização muda abruptamente de frequência, podendo isso ocorrer diversas vezes ao longo da emissão sonora; sub-harmônicos (subharmonics), que ocorrem quando, além da frequência fundamental (e seus harmônicos) encontramos frequências que são frações inteiras da fundamental (F0/2, F0/3 etc.), as quais, por sua vez, também podem apresentar harmônicos; bandas laterais (sidebands), assim chamadas quando encontramos frequências “extras”, acima e/ou abaixo da frequência fundamental ou de seus harmônicos, mas que não correspondem a frações inteiras das mesmas; e caos determinístico (deterministic chaos; WILDEN et al, 1998; ANIKIN et al, 2020), identificados como faixas no espectrograma com energia em uma banda larga sem evidência de harmonicidade clara, mas, por vezes, com estrutura harmônica residual. Teorias sobre a função distal (o porquê) da ocorrência desses fenômenos em meio às vocalizações incluem a atração da atenção de ouvintes e a transmissão de urgência (KARP et al, 2014) e a sinalização de estados aversivos (BLUMSTEIN e RECAPET, 2009).

Um tipo particular de ocorrência de fenômenos não-lineares ocorre em animais que possuem duas fontes de som distintas (duas estruturas vibrando de forma mais ou menos independente), fenômeno denominado de bifonação. Neste caso, a interação entre as frequências produz uma rica variedade de fenômenos não-lineares.

Para o leitor interessado em escutar esta rica diversidade de emissões sonoras, amostras de vocalizações e chamados não vocais de animais podem ser encontradas e ouvidas em bibliotecas sonoras  ou fonotecas especializadas. Uma das mais conhecidas e sofisticadas é a Macaulay Library (http://macaulaylibrary.org/index.do) do Laboratório de Ornitologia da Universidade de Cornell. A biblioteca digital apresenta um acervo muito rico em aves, mas que inclui espécies de muitos outros grupos, e o visitante pode tocar online as vocalizações e vídeos e visualizar os sons em espectrogramas. No Brasil, a primeira fonoteca foi criada pelo precursor da bioacústica no país, o professor Jacques Vielliard, na UNICAMP, SP. Seu acervo foi inicialmente especializado em aves e muitas gravações são analógicas. Atualmente, o acervo inclui espécies de invertebrados, anuros e algumas amostras de mamíferos (https://www2.ib.unicamp.br/fnjv/). O site Wikiaves é voltado à preservação e à contemplação de aves na natureza e oferece, além da possibilidade de ouvir vocalizações, informações sobre as espécies (https://www.wikiaves.com.br/index.php). Uma biblioteca digital especializada em vocalizações de mamíferos terrestres neotropicais é a Fonoteca César Ades (FOCA), criada e mantida pelo Laboratório de Etologia e Bioacústica (EBAC) da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto. A plataforma de acesso às vocalizações que compõem esse acervo está em construção e logo poderá ser acessada pela página da curadora e do laboratório (https://www.researchgate.net/profile/Patricia-Monticelli e https://uspebac.wixsite.com/ebac). 

Notas

[1] Assista vídeos de animais produzindo som de formas variadas, em: http://sites.sinauer.com/animalcommunication2e/chapter02.06.html; BRADBURY e VEHRENCAMP, 2011).

[2]  T. Fitch é um cientista da Biologia Cognitiva que ganhou notoriedade na literatura acadêmica contemporânea por sua contribuição na produção de conhecimento sobre a produção sonora. Página do autor: https://cogbio.univie.ac.at/people/staff/tecumseh-fitch/.


Referências

ANIKIN A, BÅÅTH R, PERSSON T. Human non-linguistic vocal repertoire: call types and their meaning. Journal of nonverbal behavior, v. 42, n. 1, p. 53-80, 2018.

BOWLING, D. L. et al. Rapid evolution of the primate larynx?. PLoS biology, v. 18, n. 8, p. e3000764, 2020.

BRADBURY, J. W.  VEHRENCAMP, S. L. Principles of animal communication, 2nd edn Sunderland. MA: Sinauer Associates, 2011.

FANT, G. Acoustic theory of speech production. Mouton, The Hague, Netherlands, 1960.

FITCH, W. T. Production of vocalizations in mammals. Visual Communication, v. 3, n. 2006, p. 145, 2006.

FITCH, T.; REBY, D. The descended larynx is not uniquely human. Proceedings of the Royal Society of London. Series B: Biological Sciences, v. 268, n. 1477, p. 1669-1675, 2001.

GASCO, A.; CUNHA, R. G. T. Larynx evolution: comparative research with primates and carnivores. In: OTTA, E.; MONTICELLI, P. F. (orgs). Acoustic communication: an interdisciplinary approach. São Paulo: Portal de Livros Abertos Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia, 2021. Acesso livre em http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/647

HAUSER, M. D. The evolution of communication. MIT press, 1996.

MCGREGOR, P. K. (Ed.). Animal communication networks. Cambridge University Press, 2005.

LORENZ, K. Z. Evolution of ritualization in the biological and cultural spheres. Philosophical Transactions of the Royal Society of London. Series B, Biological Sciences, v. 251, n. 772, p. 273-284, 1966.

SUTHERS, R. A.; FITCH, W.T.; POPPER (Ed.). Vertebrate sound production and acoustic communication. New York: Springer International Publishing, 2016. https://link.springer.com/content/pdf/10.1007/978-3-319-27721-9.pdf

TYACK, P.; MILLER, E. H. Vocal anatomy, acoustic communication and echolocation. In: HOELZEL, A. R. (ED.) Marine mammal biology: an evolutionary approach. Oxford: Blackwell science, 2002. pp 142-184.

ZAHAVI, A.; ZAHAVI, A. The handicap principle: A missing piece of Darwin's puzzle. Oxford University Press, 1999.

 Para aprofundar

BARBOSA, P. A.; MADUREIRA, S. Manual de fonética acústica experimental: aplicações a dados do português. Cortez editora, 2015.

BLUMSTEIN, D.; RECAPET, C. The sound of arousal: the addition of novel non‐linearities increases responsiveness in marmot alarm calls. Ethology, v. 115, n. 11, p. 1074-1081, 2009. https://doi.org/10.1111/j.1439-0310.2009.01691.x

HAUSER, M. D.; CHOMSKY, N.; FITCH, W. T. The faculty of language: what is it, who has it, and how did it evolve?. Science, v. 298, n. 5598, p. 1569-1579, 2002.

KARP, D.; Manser, M. B; Wiley, E. M.; Townsend, S. W. Nonlinearities in meerkat alarm calls prevent receivers from habituating. Ethology, v. 120, n. 2, p. 189-196, 2014. https://doi.org/10.1111/eth.12195

OTTA, E.; MONTICELLI, P. F. (orgs). Acoustic communication: an interdisciplinary approach. São Paulo: Portal de Livros Abertos Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia, 2021. Acesso livre em http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/647

SILVA, M. L. Vocal mimicry in parrots. In: OTTA, E.; MONTICELLI, P. F. (orgs). Acoustic communication: an interdisciplinary approach. São Paulo: Portal de Livros Abertos Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia, 2021.

SUTHERS, R. A. Contributions to birdsong from the left and right sides of the intact syrinx. Nature, v. 347, n. 6292, p. 473-477, 1990.

TSUJI, D. H. Physiology of voice production. In: OTTA, E.; MONTICELLI, P. F. (orgs). Acoustic communication: an interdisciplinary approach. São Paulo: Portal de Livros Abertos Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia, 2021. A palestra do professor Domingos Tsuji, intitulada Physiology of voice production, está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=AYqO_MSLh3k

Sobre os efeitos não-lineares e a bifonação

ANIKIN, A.; PISANSKI, K.; REBY, D. Do nonlinear vocal phenomena signal negative valence or high emotion intensity?. Royal Society open science, v. 7, n. 12, p. 201306, 2020. https://doi.org/10.1098/rsos.201306

FITCH, W. T; NEUBAUER, J.; HERZEL, H. Calls out of chaos: the adaptive significance of nonlinear phenomena in mammalian vocal production. Animal Behaviour, v. 63, n. 3, p. 407-418, 2002. https://doi.org/10.1006/anbe.2001.1912

VOLODIN, I. A.; VOLODINA, E.V. Biphonation as a prominent feature of dhole Cuon alpinus sounds. Bioacoustics, v. 13, n. 2, p. 105-120, 2002. https://doi.org/10.1080/09524622.2002.9753490

WILDEN, I.; Herzel, H.; PETERS, G; TEMBROCK, G. Subharmonics, biphonation, and deterministic chaos in mammal vocalization. Bioacoustics, v. 9, n. 3, p. 171-196, 1998. https://doi.org/10.1080/09524622.1998.9753394  

Conteúdo educativo em vídeo

Assista vídeos de animais produzindo som de formas variadas, em: http://sites.sinauer.com/animalcommunication2e/chapter02.06.html;

O evento ACOUSTIC COMMUNICATION: AN INTERDISCIPLINARY APPROACH organizado pelas professoras Emma Otta e Patrícia Monticelli e uma grande equipe, ficou registrado em vídeo e acessível via YOUTUBE, em quatro endereços: https://www.facebook.com/events/2700240623638674?ref=newsfeed

Dia 19- Manhã: https://youtu.be/vyIi9s_LPp0

Dia 19- Tarde: https://youtu.be/AYqO_MSLh3k

Dia 20- Manhã: https://youtu.be/BbsMmcP1NC8

Dia 20- Tarde: https://youtu.be/eF4hDeqwTyg

O site universitário Discovery of Sound in the Sea project (DOSITS) https://dosits.org/ oferece conteúdos sobre a ciência do som dos animais, principalmente de animais marinhos.