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A fonética das línguas sinalizadas
André Nogueira Xavier | UFPR

Versão em libras:


  1. Fonologia e fonética de línguas de sinais

William Stokoe demonstrou, à luz da corrente estruturalista vigente em sua época, que a língua de sinais americana, ASL (do inglês American Sign Language) e, por extensão, todas as línguas sinalizadas são línguas naturais. Seu principal argumento se fundamentou no fato de que, assim como as línguas orais, as línguas de sinais são duplamente articuladas. Precisamente, Stokoe (1960) demonstrou que os itens lexicais da ASL, unidades significativas, são decomponíveis em unidades menores não significativas, mas distintivas de significado. Isso pode ser ilustrado por meio dos sinais da libras OBRIGAD@ e IDEIA (Figura 1). Observa-se pelas imagens que cada um deles é formado por uma configuração de mão, por um ponto de articulação e por um movimento. Observa-se também que os sinais em questão constituem um par mínimo, pois distinguem-se entre si unicamente em função das diferentes configurações de mão que apresentam. Com isso, Stokoe demonstra que as línguas de sinais podem ser analisadas fonologicamente. 

 

Figura 1. Par mínimo da libras
Fonte: Produzida pelo autor

Stokoe (1960) observou também que a realização de uma dada configuração de mão, ou de um dado ponto de articulação ou ainda de um dado movimento pode variar. O primeiro tipo de variação pode ser observado nas duas produções do sinal OBRIGAD@ da libras (Figura 2)[1]. Na Figura 2a, vemos o polegar abduzido em relação ao indicador. Já na Figura 2b, vemos o polegar em contato com esse mesmo dedo. 


Figura 2. Diferentes realizações do sinal OBRIGAD@ da libras
Fonte: (a) Produzida pelo autor; (b) https://www.youtube.com/watch?v=vub7frPhIQQ

Variações como a retratada na Figura 2 são analisadas por Stokoe (1960) como alofonia. Para esse autor, nesses casos, as variantes representam subcategorias, alofones, de uma categoria mais abstrata, fonema, e são consideradas, portanto, como variações fonológicas[2]. Segundo Stokoe, essas variantes são previsíveis pelo contexto fonológico ou estão em variação livre.

No entanto, conforme mostram Alecrim e Xavier (2019), nem toda variação na configuração de mão parece ser fonológica. Sua análise de diferentes realizações de um mesmo sinal indicou, por exemplo, a ocorrência de micro-variações referentes ao grau de abdução do polegar (comparem-se 3a e 3b), de adução do dedo mínimo (comparem-se 3a e 3d com 3b-c) ou mesmo de extensão dos dedos (comparem-se 3a-c com 3d). Considerando que essas variações devem decorrer de diferentes fatores fisiológicos e/ou situacionais, os referidos autores as tratam como variações fonéticas. 

 

Figura 3. Variantes fonéticas da configuração de mão no sinal TARDE da libras
Fonte: corpus de Alecrim e Xavier (2019) 

Os estudos em fonética das línguas de sinais são ainda incipientes, se comparados com os fonológicos ou mesmo com os já desenvolvidos para as línguas orais. Para introduzir o/a leitor/a nesse campo, apresento na seção 2 alguns estudos sobre fonética articulatória e na seção 3 algumas incursões no campo da fonética perceptiva e das consequências da percepção visual para a estrutura das línguas sinalizadas.

  1. Fonética articulatória

Há estudos sobre a ASL que indicam que algumas configurações de mão são mais fáceis de produzir do que outras (Mandel, 1981; Woodward, 1982; Ann, 1993). Ann (1993, 2008) realizou um estudo fisiológico detalhado da articulação de configurações de mão e, com base nele, argumentou que muitos padrões encontrados poderiam ser explicados com base na anatomia e na fisiologia da mão. Por exemplo, a maior frequência intra e interlinguística de configurações em que apenas o indicador ou o dedo mínimo está estendido em oposição a configurações em que apenas o dedo anelar está estendido. Segundo a autora, tanto o indicador quanto o dedo mínimo têm um músculo extensor separado (extensor indicis proprius e extensor digiti minimi, respectivamente) e um tendão, que lhes permitem ser estendidos independentemente. Diferentemente, os dedos médio e anelar não apresentam essa mesma característica. Sendo assim, eles só podem ser estendidos isoladamente por meio de um músculo extensor compartilhado com o indicador e o dedo mínimo (extensor digitorum communis), enquanto outros músculos simultaneamente flexionam os outros dedos.

Dos três aspectos fonológicos originalmente propostos por Stokoe (1960), a produção da configuração de mão é, sem dúvidas, a mais complexa, pois envolve flexões, extensões, aduções e abduções das articulações de cada dedo, além do possível contato entre o polegar e os demais dedos. No sistema de transcrição fonética que desenvolveram, Johnson e Liddell (2011) propõem a descrição de cada articulação de cada dedo. Entretanto, os autores reconhecem que o polegar e os demais dedos têm estruturas anatômicas diferentes e, portanto, os descreve separadamente.

O polegar é composto de três ossos: a falange distal (d), a falange proximal (p) e o metacarpo (mc), osso mais longo que se liga ao carpo (c). Esses ossos se articulam através de três articulações: a articulação interfalangeana distal (IFD), a articulação metacarpofalangeana (MCF) e a articulação carpometacarpiana (CM). Os ossos e as articulações do polegar bem como as partes dele que podem contactar outros dedos são ilustrados na Figura 4. 

 
Figura 4. Partes do polegar
Fonte: Alecrim e Xavier (2021, p. 298) 

Uma particularidade do polegar em relação aos demais dedos está no fato de que sua articulação carpometacarpiana (CM) pode rotacioná-lo de modo a dispô-lo em três planos diferentes e ainda aduzi-lo ao dedo vizinho ou abduzi-lo deste. Especificamente em relação à rotação, o polegar pode ser posicionado no mesmo plano que os demais dedos, posição denominada lateral; quando relaxado, em localização levemente anterior ao plano da palma, postura designada como neutra; ou ainda em frente à superfície dos outros dedos, configuração chamada oposta. Concomitantemente a uma dessas rotações, o polegar também é capaz de abduzir-se, em diferentes graus, do indicador, semelhantemente ao que acontece com os demais dedos. Johnson e Liddell (2012) propõem três graus para essa abdução: abduzido, relaxado ou neutro e aduzido. No grau abduzido, o metacarpo aparece afastado dos outros metacarpos. No relaxado ou neutro, o metacarpo está em uma posição intermediária, ou seja, levemente afastado do metacarpo mais próximo. Por fim, no aduzido, o metacarpo está em contato com o metacarpo do dedo adjacente. Some-se a isso a capacidade, assim como os demais dedos, de se flexionar e estender em suas articulações.

Os dedos indicador, médio, anelar e mínimo, por sua vez, são formados por três falanges: a distal, a medial e a proximal. Estas, por sua vez, são conectadas por meio das articulações interfalangeanas distais (IFD) e interfalangeanas proximais (IFP). As falanges proximais se conectam aos metacarpos por meio das articulações metacarpofalangeanas (MCF) (Figura 5). As articulações IFD e IFP funcionam como dobradiças, estendendo-se e flexionando-se em um único plano. As articulações MCF, por sua vez, são mais complexas, pois, além de se dobrarem no mesmo plano que IFD e IFP, também conseguem se mover lateralmente, resultando na abdução e adução dos dedos.


Figura 5. Partes dos dedos indicador, médio, anelar e mínimo
Fonte: Alecrim e Xavier (2021, p. 302)

Embora não tenham feito uma análise exaustiva da variação fonética em configurações da ASL, Johnson e Liddell (2011, 2012) reportam alguns casos, que reproduzo a seguir. O primeiro conjunto de dados descrito pelos autores se refere à configuração de mão em B, tipicamente produzida com todos os dedos estendidos e unidos pelas laterais. Como se pode ver nas imagens da Figura 6, tal configuração variou em sua produção em diferentes sinais em relação principalmente (1) à posição do polegar e (2) à adução/abdução do dedo mínimo.


Figura 6. Variação na configuração em B da ASL
FONTE: Johnson e Liddell (2011, p. 18)

Os referidos autores acreditam que a variação na adução/abdução do dedo mínimo decorra do grau de flexão das articulações metacarpofalangeanas, MCF. Como evidência disso, eles apontam que o dedo mínimo estendido não ocorre nos exemplos da Figura 7a-c, em que a configuração de mão em B aparece flexionada nas articulações MCF, mas ocorre nos demais casos, em que essas mesmas articulações aparecem estendidas (Figura 7d-h).


Figura 7. Não-ocorrência vs ocorrência da abdução do dedo mínimo na configuração em B da ASL
Fonte: Johnson e Liddell (2011, p. 21)

Johnson e Liddell (2012) observaram ainda que a variação na CM pode decorrer também da influência dos sinais adjacentes. Eles ilustram isso por meio da produção da letra manual E em dois contextos diferentes: seguindo a letra manual M[3] e seguindo a letra manual N[4] (Figura 8). Conforme se pode ver nas imagens, quando seguiu a letra manual M, a letra manual E foi produzida com dedos médio e anelar contactando o dorso do polegar e os dedos exibindo praticamente a mesma flexão em suas articulações. Diferentemente, quando seguiu a letra manual N, a letra manual E foi produzida com os dedos indicador e médio contactando o dorso do polegar e os dedos anelar e mínimo, não empregados na letra manual anterior, configurados diferentemente dos dedos indicador e médio.


Figura 8. Variação na letra manual ‘E’ motivada pela configura da letra manual anterior na ASL
Fonte: Johnson e Liddell (2012, p. 330)

Crasborn (2012) cita dois outros tipos de variação fonética observados nas línguas sinalizadas. Um deles envolve a mão como um todo e o outro o movimento. De acordo com o autor a variação fonética que afeta a mão como um todo pode se manifestar através da troca de dominância, ou seja, realização com a mão não-dominante de um sinal, ou parte dele, tipicamente produzido com a mão dominante. Esse processo foi analisado por Gabardo e Xavier (2019) na libras. Conforme se pode ver nos dados dos autores reproduzidos na Figura 9, ele foi atestado tanto em sinais monomanuais (cf. HOMEM, Figura 9a), quanto em bimanuais dos dois tipos: equilibrados, ou seja, realizados com as duas mãos em movimento (cf. BICICLETA, Figura 9b), ou não-equilibrados, isto é, articulados com uma mão ativa e a outra passiva (cf. ÁRVORE, Figura 9c). No caso de BICICLETA a variação se dá em relação à mão que inicia o movimento e no caso de ÁRVORE, à mão que desempenha o papel ativo e o papel passivo.

 
Figura 9. Exemplos de troca de dominância em libras reproduzidos de Gabardo e Xavier (2019, p. 77)

É importante dizer que a maior parte dos dados analisados por Gabardo e Xavier (2019) apresentaram motivações de ordem morfossintática para a ocorrência do processo em questão. Entretanto, os autores reportam que em alguns casos a motivação parece ser de ordem fonético-fonológica. Precisamente, eles observaram que alguns sinais foram produzidos com a mão não-dominante porque ela já estava ativada na produção do sinal anterior.

O outro tipo de variação fonética que afeta a mão como um todo diz respeito à altura que a mão não-dominante pode exibir durante a produção de um sinal bimanual. Essa variação já foi documentada na ASL (HOCHEGSANG, s/d) e na libras (XAVIER, 2014; SILVA; XAVIER, 2021) e designada como abaixamento da mão não dominante. Na Figura 10, pode-se ver a variação na altura da mão não-dominante em relação à mão dominante na realização da variante bimanual do sinal EU.


Figura 10. Variação na altura da mão não-dominante na realização da variante duplicada do sinal EU da libras
Fonte: Xavier (2014, p. 125)

Por fim, Crasborn (2012) reporta a ocorrência de variação fonética no movimento e ilustra isso por meio de dados da língua de sinais holandesa, NGT (do holandês Nederlandse Gebarentaal). Segundo o autor, o movimento de um sinal, embora seja canonicamente articulado por meio de flexões, extensões ou rotações de uma ou mais articulações específicas da mão e/ou antebraço, ele pode variar e ser realizado por articulações mais próximas do tronco, proximalização, ou mais distantes, distalização (Figura 11).


Figura 11. Ossos e articulações da mão e braço

Crasborn (2012) cita como exemplo de proximalização na NGT a realização do sinal CALOR por meio de flexões dos cotovelos (Figura 12b) e não apenas dos pulsos (Figura 12a), como tipicamente é produzido. Já como exemplo de distalização, ele cita a realização reduzida de DIZER da NGT (Figura 12d) por meio da flexão da articulação metacarpofalangeana do indicador, em vez da típica flexão do cotovelo (Figura 12c).  


Figura 12. Exemplos de proximalização e pistalização na NGT

De acordo com Crasborn (2011), a variação fonética pode ser motivada por fatores linguísticos, ou seja, relacionados ao contexto fonológico e à estrutura prosódica e/ou por fatores não-linguísticos, os quais podem decorrer de propriedades do emissor, do destinatário e/ou da situação. Como se pode ver na Figura 13, essas três classes de fatores não-linguísticos se subdividem em subclasses. Os exemplos discutidos nesta seção ilustram a variação fonética motivada pelo contexto fonológico (cf. a variação na letra manual E na ASL e alguns casos de troca de dominância em libras). Ilustram também fatores fisiológicos do sinalizante (cf. a variação na abdução ou não do dedo mínimo na configuração de mão em B na ASL) e situacionais (cf. a distalização e a proximalização na NGT que, segundo Crasborn (2001), são comuns, respectivamente, em “cochichos” e “gritos” sinalizados). 


Figura 13. Fonte(s) da variação fonética
Fonte: traduzida de Crasborn (2001, p. 33)

Há ainda um vasto campo para exploração, considerando, por exemplo, a variação fonética motivada por fatores sociais e estilísticos do sinalizante, ou sociais e fisiológicos do destinatário, entre outros.

  1. Fonética perceptiva

De acordo com Crasborn (2012), a diferença de modalidade entre línguas faladas e sinalizadas é vista como categórica: as primeiras são frequentemente referidas como como oro-auditivas, enquanto as segundas como gestuais-visuais. O autor considera que a escrita deve contribuir com essa visão, uma vez que exclui a gestualidade que acompanha a fala de sua representação. Entretanto, acumulam-se evidências de que as línguas faladas são multimodais, tanto perceptiva quanto articulatoriamente. Em relação à percepção, o efeito McGurk indica que a fala não é percebida apenas auditivamente (McGURK; MacDONALD, 1976). Já em relação à produção, observa-se que aspectos visuais da comunicação complementam os sinais acústicos. Por exemplo, as expressões faciais podem indicar o estado emocional do falante (EKMAN, 1993); movimentos da cabeça podem funcionar como pistas interacionais (McCLAVE, 2000); gestos manuais podem desempenhar diferentes funções (KENDON, 2004)[5]. O Quadro 1 a seguir sintetiza as diferenças de modalidade entre línguas faladas e sinalizadas e, ao mesmo tempo, indica que elas não são categóricas.


Quadro 1. Diferenças na modalidade da comunicação entre ouvintes e surdos
Fonte: traduzido de Crasborn (2012, p. 6)

Como dito anteriormente, a pesquisa fonética sobre as línguas sinalizadas desenvolvida até o presente foca quase exclusivamente na articulação dessas línguas. De acordo com Crasborn (2012), isso deve decorrer do fato de que a percepção visual é extremamente complexa, pois:

Embora haja apenas alguns poucos parâmetros de uma pequena seção do espectro eletromagnético que o sistema visual humano pode explorar (luminescência e comprimento da onda), esses parâmetros constituem o input para uma larga gama de tecido sensível à luz (a retina) dos olhos, que também se movem com os movimentos da nossa cabeça e corpo, bem como independentemente (direção do olhar). O cérebro humano processa esse input muito complexo de formas intrincadas para nos dar a impressão consciente de que vemos objetos coloridos tridimensionais se movendo através do espaço com o passar do tempo (CRASBORN, 2012, p. 6, tradução minha).

O referido autor ainda atribui a falta de estudos fonéticos perceptivos à inexistência, segundo ele, de um campo especializado em “percepção de movimentos corporais” na psicologia perceptual. Ele acredita que se houvesse tal campo, os linguistas poderiam emprestar dele ferramentas descritivas e analíticas da mesma forma que têm emprestado a terminologia da anatomia para falar sobre a articulação (CRASBORN, 2012, p. 6).

Um dos poucos estudos realizados sobre a percepção da sinalização foi realizado por Siple (1978). Segundo a autora, o campo visual pode ser dividido em “centro”, ou seja, uma pequena área na qual detalhes espaciais finos são mais bem processados, e “periferia”, região relativamente mais ampla, onde movimentos e detalhes não finos são mais bem percebidos. A autora sustentou que sinalizantes nativos percebendo a ASL focam seu olhar em volta do queixo e não o movem de maneira a seguir os movimentos das mãos. Sendo assim, em uma conversa em língua de sinais, o destinatário veria mais detalhes da configuração de mão de sinais articulados próximos à face do que detalhes destas produzidos em regiões mais periféricas. Crasborn (2012), no entanto, ressalta a necessidade de testar essa generalização através de estudos utilizando eye-tracker.

3.1 Efeitos da modalidade de percepção na estrutura das línguas sinalizadas

Segundo Battison (1978), as configurações de mão na ASL se distribuem em um continuum que vai das mais marcadas, ou seja, fonologicamente complexas, às não marcadas. O autor propõe sete configurações não-marcadas, a saber, G/1, 5, A, S, B, C e O (Figura 14), para essa língua e sustenta sua proposição em evidências de diferentes naturezas.


Figura 14. Configurações não-marcadas
Fonte: reproduzida de Alecrim (2022, p. 30)

No que diz respeito à percepção, Battison (1978) descreve essas configurações como formas geométricas maximamente distintas entre si (com exceção de A e S) e embasa essa descrição fazendo menção a um experimento de percepção realizado por Lane, Boyes-Braem e Bellugi (1976), cujo resultado aponta que as quatro configurações de mão menos confundidas entre si foram, na ordem, 5, B, C e O, com A em sétimo lugar.

Como evidência adicional, Battison (1978) cita que configurações não marcadas são menos restritivas do que as mais marcadas em termos da interação com outros elementos dos sinais. Como sugere a Figura 15, comparativamente às configurações mais marcadas R (dedos indicador e médio cruzados) e 3 (polegar e dedos indicador e médio estendidos e demais flexionados), a configuração não-marcada em B apresenta uma maior variedade de pontos em que pode contactar o corpo ou a outra mão na formação de sinais. Em outras palavras, as configurações mais marcadas têm pontos de contato mais restritos, como se pode inferir pelo menor número de sinais associados a regiões em sua superfície em comparação à configuração B.


Figura 15. Grau de marcação de configurações de mão da ASL indicado pelo número de sinais que em sua produção apresentam contato feito entre a região da mão indicada e outra parte do corpo
Fonte: traduzida e adaptada de Battison (1978, p.208) por Alecrim (2022, p. 31).

Com base no trabalho de Siple (1978) que propõe que na percepção da sinalização há uma região central, parte inferior da face, e outra periférica, que fica ao redor da central, Battison (1978) testou a distribuição de configurações marcadas e não-marcadas nessas duas regiões. Para isso, coletou sinais da ASL articulados próximo do corpo e sem contato do dicionário de Stokoe, Casterline e Croneberg (1965). Como mostra o gráfico na Figura 16, a porcentagem de configurações de mão (CM) não marcadas no tronco é maior em relação às marcadas nessa mesma região. Já em relação às configurações de mão (CM) marcadas, vê-se que estas são mais frequentes na cabeça do que no tronco. Isso corrobora o trabalho de Siple (1978), pois indica que áreas mais altas ou de maior acuidade visual no espaço de sinalização permitem configurações mais complexas, ao passo que regiões periféricas favorecem configurações não-marcadas, dado que estas são mais fáceis de serem percebidas.


Figura 16. Distribuição das configurações mão marcadas e não-marcadas na ASL por regiões de maior (cabeça e pescoço) e menor (tronco) acuidade visual
Fonte: criada com base em Battison (1978, p. 29)

De acordo com Crasborn (2012), a percepção auditiva é muito mais apropriada para distinguir padrões temporais do que a percepção visual. Isso é, por vezes, correlacionado com a estrutura sequencial encontrada na fonologia e na morfologia das línguas faladas. O canal visual, por sua vez, tem grande capacidade de veicular informação simultânea. Isso pode explicar uma preferência por estruturas não sequenciais na fonologia e não-concatenativas na morfologia das línguas sinalizadas. Ilustro essas diferenças por meio do contraste feito por Wilcox e Wilcox (2005, p. 66)  entre o navajo e a ASL. Conforme explicam os autores, uma frase como “eu olho para a garota por muito tempo” em navajo seria expressa por uma cadeia de morfemas produzidos linearmente (1), ao passo que em ASL quase todo esse enunciado pode ser expresso por um único sinal verbal, que por meio da sua direcionalidade indica seu sujeito e seu complemento e da forma e repetição do movimento, seu aspecto (2).

[1] Para ver casos de variação no ponto de articulação, no movimento e em outros aspectos dos sinais na libras, ver Xavier e Barbosa (2014).

[2] Na verdade, Stokoe (1960) propôs o uso do termo alóquiro e quirema para se referir, respectivamente, ao alofone e ao fonema, assim como propôs o termo quirologia para se referir à fonologia. Seu objetivo era salvaguardar as diferenças de modalidade entre línguas sinalizadas e línguas faladas, uma vez que são morfologicamente constituídas a partir da raiz grega keir ‘mão’. No entanto, essa terminologia não foi incorporada por pesquisadores que o sucederam.

[3] https://www.handspeak.com/word/search/index.php?id=2472

[4] https://www.handspeak.com/word/search/index.php?id=2473

[5] Com base em Crasborn (2012) é válido lembrar que ouvintes têm muita dificuldade na leitura labial desacompanhada da informação acústica. Isso decorre do fato de que somente um pequeno subconjunto de traços articulatórios dos sons da fala pode ser visto (cf. o arredondamento dos lábios e sua abertura, o contato labiodental, e a altura da mandíbula). O estado da glote, o abaixamento do véu palatino e a altura do dorso da língua, por exemplo, são invisíveis (CRASBORN, 2012, p. 5). Sendo assim, segundo Crasborn (2012, p. 5), é correto dizer que, para o nível silábico e segmental, a fala faz primariamente uso da modalidade acústico-auditiva, embora haja algum input visual também.


Referências

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