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Fonética e Fonologia de L2
Ubiratã Kickhöfel Alves | UFRGS/CNPq

Caracterizar os estudos voltados ao sistema sonoro de uma nova língua constitui tarefa desafiadora, uma vez que tal área é denominada, tanto no contexto nacional quanto no internacional, a partir de diferentes termos. Assim, além da expressão ‘Fonética e Fonologia de L2’, utilizada tanto no título quanto ao longo deste verbete (para dar conta não somente de uma segunda língua, mas de qualquer língua não nativa de um sistema multilíngue do aprendiz), encontramos rótulos como ‘Aquisição Fonético-Fonológica de L2’, ‘Aquisição Fonológica de L2’, ‘Desenvolvimento Fonético-Fonológico de L2’, ‘Desenvolvimento Fônico de L2’, dentre outros. Além disso, o próprio uso do termo ‘Segunda Língua’ (L2) pode vir a implicar uma tomada de decisão teórico-metodológica, sobretudo entre aqueles pesquisadores que, em meio às discussões do campo da Linguística Aplicada, venham a estabelecer distinção entre ‘Segunda Língua’ (L2) e ‘Língua Estrangeira’ (LE). Frente a essa discussão, na última década, termos como ‘Língua Adicional’ (LA) e ‘Língua Não Nativa’ (LNN) são também empregados. Por sua vez, no cenário internacional contemporâneo, a denominação ‘L2 Speech’ (cuja tradução parece ainda não ter sido adotada nos estudos brasileiros) mostra-se bastante em voga, provavelmente por enfocar o objeto de estudo em si, de modo a evadir a escolha entre os termos ‘Aquisição’, ‘Aprendizagem’ ou ‘Desenvolvimento’.

A grande diversidade de rótulos usados para caracterizar o estudo dos sons de uma nova língua advém das diferentes concepções de aquisição/desenvolvimento, de ensino/aprendizado de L2 e até mesmo de Fonética e Fonologia defendidas pelos pesquisadores voltados a esse objeto de estudo. Ao invés de destacarmos tais diferentes visões, optamos, aqui, por ressaltar os pontos de intersecção entre esses investigadores: (i) os pesquisadores do campo de ‘Fonética e Fonologia de L2’ concordam que o dado empírico referente ao componente sonoro de uma nova língua constitui uma fonte rica para a teorização sobre os sistemas linguísticos; (ii) a partir das diferentes teorias de base que ancoram os seus trabalhos, os pesquisadores refletem a relação entre as representações sonoras da língua materna (L1) e da nova língua, independentemente da natureza do primitivo formal (acústica, articulatória, etc.) que caracterize tais representações.

Com base nas duas premissas aqui levantadas, os pesquisadores da área de Fonética e Fonologia de L2 mostram-se vinculados ao campo da Fonologia de Laboratório. Cabe dizer que a Fonologia de Laboratório não se caracteriza como uma posição teórica, mas sim compreende um conjunto de métodos experimentais a partir dos quais são testadas hipóteses acerca do conhecimento que os indivíduos têm de sua língua materna (L1) e dos demais sistemas de línguas adicionais. Nesse âmbito, conforme explicam Pierrehumbert, Beckman e Ladd (2000[2002, p.8]), “as atividades de pesquisa dentro da Fonologia de Laboratório envolvem a cooperação de pessoas que podem discordar entre si no que concerne à Teoria Fonológica, mas que concordam em se preocupar com o fortalecimento das bases científicas da Fonologia a partir de uma metodologia desenvolvida, uma modelagem explícita, e a apresentação e acréscimos de resultados empíricos”. Assim, independentemente de suas concepções de língua, os pesquisadores em Fonética e Fonologia de L2 dedicam-se ao estudo dos processos linguísticos e cognitivos envolvidos na formação de um novo sistema sonoro a partir de um sistema pré-estabelecido (ou mais sistemas pré-estabelecidos, no caso de indivíduos multilíngues). Desse processo, resultará que não somente os sistemas previamente estabelecidos poderão exercer efeitos no sistema em formação, mas também a nova língua poderá influenciar tais sistemas prévios (CELATA, 2019; CHANG, 2019; De LEEUW, 2019).

Para explicar a emergência de um novo sistema sonoro, os pesquisadores tendem a ancorar seus estudos em modelos de percepção e produção de sons de L2, os quais, a partir das premissas epistemológicas de base específicas a cada modelo, guiarão a teorização sobre o processo de desenvolvimento de uma nova língua. No cenário atual de investigações da área, três são os principais modelos de percepção e produção de sons de L2: (i) o Speech Learning Model, de Flege 1995 (revisado em Flege e Bohn 2021); (ii) o Perceptual Assimilation Model-L2, de Best e Tyler (2007), o qual foi revisitado, no contexto nacional, em Perozzo (2017); (iii) o Second Language Linguistic Perception Model (L2LP), de Escudero (2005). Cada um desses modelos apresenta, em sua essência, concepções de língua e de primitivo linguístico bastante distintas entre si. Ao passo que o SLM e o PAM-L2 podem ser considerados de natureza dinâmica, o primeiro deles investe em um primitivo psicoacústico, enquanto o segundo tem por base um primitivo articulatório. Por sua vez, o L2LP estabelece-se a partir de uma teoria de gramática. Conforme apontamos em Alves (2021), independentemente do modelo adotado, cada um deles apresenta, ainda, uma série de desafios a serem enfrentados, dentre os quais destacamos a necessidade de implicações mais claras para o desenvolvimento de aspectos de natureza prosódica da L2.

Os modelos supramencionados permitem, em grande parte, abordar a questão cerne de interesse dos pesquisadores da área: o processamento dos sons da L2 e a relação entre percepção e produção dos sons dessa nova língua. Ancorados no entendimento dessa relação, os pesquisadores podem desenvolver estudos em uma série de temáticas mais específicas, tais como (i) a questão da deriva/atrito linguístico de L1 (ou seja, a influência de uma nova língua adicional sobre os sistemas pré-estabelecidos); (ii) os efeitos exercidos pela ortografia na representação sonora de L2; (iii) a inteligibilidade e a compreensibilidade (cf. DERWING; MUNRO, 2015) das produções de fala com sotaque estrangeiro, julgadas tanto por ouvintes nativos quanto por não nativos; (iv) os efeitos de práticas laboratoriais, como o treinamento perceptual de sons, e o papel de instrução de pronúncia na sala de aula de L2.

No que diz respeito à primeira temática específica (i), os estudos de deriva ou atrito de L1 prestam contribuições sobretudo para o entendimento do processo multidirecional de influência interlinguística. Tais estudos mostram-se importantes, inclusive, para as próprias investigações sociolinguísticas referentes à descrição dos sistemas de L1, visto que evidenciam que o conhecimento de línguas adicionais pode constituir uma variável importante na caracterização de uma dada variedade de fala. A partir da segunda temática, referente aos efeitos da ortografia, estabelece-se uma grande interface com os estudos psicolinguísticos, sobretudo ao considerarmos o caráter multimodal das representações. A temática referente à inteligibilidade e à compreensibilidade da fala (temática iii) permite, por sua vez, a discussão acerca de como os falantes de um dado sistema de L1 processam a fala (em sua L1 ou, ainda, em uma de suas línguas adicionais) produzida por aprendizes estrangeiros, do que resulta a discussão sobre quais pistas são tomadas como prioritárias para o estabelecimento de distinções funcionais em um dado sistema linguístico (cf. HOLT; LOTTO, 2006). Por fim, os experimentos referentes ao papel do treinamento perceptual (geralmente desenvolvidos em contextos laboratoriais), bem como os estudos acerca da eficiência da instrução (seja ela explícita ou implícita) de pronúncia, prestam especial colaboração aos estudos sobre metodologia de ensino, ao mesmo tempo em que dialogam com os estudos psicolinguísticos sobre o aprendizado implícito e explícito de línguas.

A partir desse levantamento das temáticas supracitadas, verificamos que os estudos de Fonética e Fonologia de L2 têm crescido quantitativa e qualitativamente na última década em nosso país. A agenda de pesquisas da área, sobretudo no cenário nacional de pesquisas, demanda um maior número de investigações referentes a questões prosódicas, além de estudos que se voltem aos efeitos da fala com acento estrangeiro entre ouvintes de diferentes nacionalidades. Frente a tal agenda ampla, a caracterização das temáticas acima demonstra, mais uma vez, a necessidade de um instrumental laboratorial robusto, para que a descrição e análise de dados se mostre confiável. Tal fato, indiscutivelmente, exigirá bons conhecimentos de Fonética, nos seus âmbitos articulatórios, acústicos e auditivos. Por constituir um campo de pesquisas cujas elaborações teóricas são estabelecidas a partir da verificação acurada do dado empírico, bons conhecimentos de metodologia experimental e de estatística inferencial são, também, pré-requisitos fundamentais. Além disso, a partir das temáticas supracitadas, os estudos da área exigem um conjunto de interfaces que precisarão ser necessariamente estabelecidas pelos estudiosos, uma vez que tais temáticas perpassam questões de interesse não somente para a Fonética e a Fonologia, mas, também, para a Psicolinguística e para a própria Linguística Aplicada ao Ensino de L2.

À guisa de conclusão, reafirmamos que os estudos em Fonética e Fonologia de L2 caracterizam um campo multidisciplinar e multifacetado. Ao mesmo tempo em que se estabelecem teoricamente a partir de diversos campos do conhecimento, os estudos de Fonética e Fonologia de L2 prestam, também, contribuições teóricas e metodológicas a essas áreas, contribuindo para a descrição e a teorização, inclusive, dos próprios sistemas de L1 dos indivíduos. Para o pesquisador interessado em trilhar esses caminhos, a necessidade de consolidação de um conhecimento amplo fica clara na relação bibliográfica que segue. Além de todos os trabalhos já explicitamente mencionados ao longo deste texto (organizados, a seguir, nas categorias de ‘Bibliografia Básica’ e ‘Bibliografia de Aprofundamento’), apresentamos uma série de obras que consideramos basilares para o entendimento da área. Esperamos, a partir da presente exposição e da relação bibliográfica que segue, oferecer um convite a futuros investigadores que queiram iniciar seus estudos sobre os sons das línguas não nativas. 


Bibliografia básica

ALVES, Ubiratã Kickhöfel. Modelos de percepção de sons de línguas não nativas: contribuições para a discussão sobre primitivos fonológicos. In: PRADO, Natália Cristine; CANGEMI, Ana Carolina. Estudos fonéticos e fonológicos: observando fatos linguísticos. Porto Velho, RO: EDUFRO, 2021, p. 196-227.

BARBOSA, Plínio A.; MADUREIRA, Sandra. Manual de Fonética Acústica Experimental: aplicações a dados do Português. São Paulo: Cortez, 2015.

BEST, Cathernine; TYLER, Michael D. Nonnative and second-language speech perception: commonalities and complementarities. In: BOHN, Ocke-Schwen; MUNRO, Murray J. (eds.). Language Experience in Second Language Speech Learning: in honor of James Emil Flege. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company, 2007, p. 13-34.

BOHN, Ocke-Schwen; MUNRO, Murray J. (eds.). Language Experience in Second Language Speech Learning: in honor of James Emil Flege. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company, 2007.

COLANTONI, Laura; STEELE, Jeffrey; ESCUDERO, Paola. Second Language Speech: Theory and Practice. Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2015.

CRISTÓFARO-SILVA, Thaïs; SEARA, Izabel; SILVA, Adelaide; RAUBER, Andreia Schurt; CANTONI, Maria. Fonética Acústica: os sons do Português Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2019.

DERWING, Tracey; MUNRO, Murray. Pronunciation Fundamentals: Evidence-based perspectives for L2 Teaching and Research. Amsterdam: John Benjamins Publishing, 2015.

ESCUDERO, Paola. Linguistic perception and second language acquisition: explaining the attainment of optimal phonological categorization. Tese (Doutorado). Utrecht: University of Utrecht, 2005.

FLEGE, James E. Second Language Speech Learning: Theory, findings, and problems. In: STRANGE, Winifred (ed.). Speech perception and linguistic experience: issues in cross-language research. Timonium, MD: York Press, 1995, p. 233-277.

FLEGE, James E.; BOHN, Ocke-Schwen. The Revised Speech Learning Model (SLM-r). In: WAYLAND, Ratree (ed.). Second Language Speech Learning: Theoretical and Empirical Progress. Cambridge: Cambridge University Press, 2021, p. 3-83.

GARCIA, Guilherme D. Data visualization and analysis in Second Language Research. New York: Routledge, 2021.

KUPSKE, Felipe Flores; ALVES, Ubiratã Kickhöfel; LIMA JR., Ronaldo Mangueira (orgs.). Investigando os sons de línguas não nativas: uma introdução. Maceió: Editora da Abralin, 2021.

STRANGE, Winifred (ed.). Speech Perception and Linguistic Experience. Timonium, MD: York Press, 1995b.

WAYLAND, Ratree (ed.). Second Language Speech Learning: theoretical and empirical progress. Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2021.

Bibliografia de Aprofundamento

CELATA, Chiara. Phonological Attrition. In: SCHMID, Monika S.; KÖPKE, Barbara (eds.). The Oxford Handbook of Language Attrition. Oxford: Oxford University Press, 2019, p. 218-227.

CHANG, Charles B. Phonetic Drift. In: SCHMID, Monika S.; KÖPKE, Barbara (eds.). The Oxford Handbook of Language Attrition. Oxford: Oxford University Press, 2019, p. 191-203.

De LEEUW, Esther. Phonetic Attrition. In: SCHMID, Monika S.; KÖPKE, Barbara. (eds.). The Oxford Handbook of Language Attrition. Oxford: Oxford University Press, 2019, p. 204-217. 

GASS, Susan; MACKEY, Alisson. The Routledge Handbook of Second Language Acquisition. New York: Routledge, 2012.

HOLT, Lori L.; LOTTO, Andrew J. Cue weighting in auditory categorization: implications for first and second language acquisition. Journal of the Acoustical Society of America, v. 119, n. 5, p. 3059-3071, 2006.

KANG, Okim; THOMSON, Ron I.; MURPHY, John M. (eds.). The Routledge Handbook of Contemporary English Pronunciation. New York: Routledge, 2018.

KATZ, William F.; ASSMANN, Peter F. (eds.). The Routledge Handbook of Phonetics. New York: Routledge, 2019.

LOEWEN, Shawn; SATO, Masatoshi (eds.). The Routledge Handbook of Instructed Second Language Acquisition. New York: Routledge, 2017.

PEROZZO, Reiner Vinicius. Sobre as esferas cognitiva, acústico-articulatória e realista indireta da percepção fônica não nativa: para além do PAM-L2. Tese (Doutorado em Letras). Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2017.

PIERREHUMBERT, Janet B.; BECKMAN, Mary E.; LADD, Robert. Conceptual foundations of phonology as a laboratory science (reprint). In: COHN, Abigail C.; FOUGERON, Cécile; HUFFMAN, Marie K. (eds.). The Oxford Handbook of Laboratory Phonology. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 17-39.