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Fonologia da prosódia 2: tom e entoação
Carolina Serra | Departamento de Letras Vernáculas/FL/UFRJ

A distinção entre tom e entoação, quando se comparam línguas tonais e línguas entoacionais, deve ser estabelecida a partir da fonologia das línguas, visto que, no que concerne à materialidade dos eventos melódicos (modulações de F0) e à sua ancoragem no texto segmental (sílabas), essas categorias são indistintas. Do ponto de vista da natureza linguística, entretanto, nas línguas tonais, os tons são elementos constitutivos das sílabas, juntamente com vogais e consoantes, e fazem parte da configuração lexical das palavras, o que equivale a dizer que as palavras já nascem, nessas línguas, tendo suas sílabas associadas a tons. Isso não quer dizer, todavia, que processos fonológicos não possam atuar na alteração desses tons quando as palavras são inseridas na frase, no que chamamos de nível pós-lexical.

Em uma língua tonal prototípica, o mais comum é que haja um conjunto de palavras com a mesma sequência de vogais e consoantes constituindo suas sílabas, mas cada uma relacionada a um tom diferente. Um exemplo emblemático de língua tonal é o mandarim, no qual, pela combinação de quatro tons com uma dada sequência segmental, podem ser geradas quatro palavras diferentes, por exemplo: wū (“casa”), com tom alto e plano; wú (“não haver”), com tom médio-alto ascendente; wǔ (“cinco”), com tom baixo descendente-ascendente, e wù (“coisa”), com tom alto-baixo descendente. Aquilo que, em um sistema de tons atribuídos no léxico (no nível da palavra), serve para distinguir palavras, ou seja, para indicar diferentes referentes do mundo biossocial, em um sistema de tons atribuídos pós-lexicalmente (no nível da frase), vai dar conta da diferenciação de unidades maiores do que a palavra, vai dar conta da expressão da “ideia” de uma frase, de sua intenção comunicativa. Daí que, nas línguas não-tonais, ou seja, nas línguas entoacionais, como as línguas românicas, por exemplo, o tom ganha estatuto fonológico de acento tonal, aquele elemento constitutivo de um dado padrão entoacional (a própria entoação da frase), que está associado às sílabas tônicas das frases. Como se nota, as funções gramaticais dos tons, e também o seu escopo, podem ser diferentes a depender da tipologia da língua.

Nas línguas ditas entoacionais, então, as distinções estabelecidas pelos tons estão no nível da frase, ficando a cargo do acento de palavra distinguir, mais ou menos produtivamente, pares ou conjuntos de palavras. Acontece, assim, em línguas como o português brasileiro, de haver na frase um acento principal, acento de frase ou acento tonal nuclear -- como é chamada a melodia principal da frase, em diferentes correntes teóricas -- que vai dar conta da categorização entoacional da frase. Então, em uma frase como i) “O João levou o Pedro para CAsa.”, que poderia ser resposta a uma pergunta do tipo “O que aconteceu ontem?”, termos, por uma relação de proeminência entre todas as sílabas tônicas ali presentes, um acento “dominante” na sílaba CA da palavra final “casa”. Do ponto de vista fonológico, essa frase poderia ser chamada de frase entoacional e ela corresponde, do ponto de vista pragmático, a uma frase declarativa afirmativa de foco amplo, já que toda a informação que está sendo dada é nova. Sua curva melódica é descendente, apresentando um declínio maior justamente na sílaba tônica final CA; descenso que se estende pela sílaba final da frase. 

Muita coisa, no entanto, pode mudar a posição do acento melódico principal da frase entoacional. A estrutura sintático-semântica pode ser modificada, fazendo com que um foco prosódico caia, por exemplo, na sílaba VOU de “levou”, se a “mesma frase” acima ii) “O João leVOU o Pedro para casa.” for uma fala corretiva que representa uma negação a uma afirmação anterior do tipo “O João mandou o Pedro para casa.”. Essa alteração do foco da frase, de um domínio mais amplo (a frase inteira) com estatuto informativo (como em (i)) para um domínio mais estreito e com função corretiva (como em (ii)), também vai modificar a excursão da curva melódica como um todo. Os estudos demonstram que, na palavra focalizada, em (ii), a tônica normalmente é realizada com maior volume, com uma maior expansão da gama de F0 e com maior duração, relativamente à mesma sílaba em uma palavra não focalizada. O acento principal da frase também muda de lugar, da última sílaba tônica para a tônica da palavra focalizada e depois dela, não raro, acontece um processo de desacentuação tonal, tornando essa curva descendente final da declarativa mais “suave”. Mas o locutor da frase em (i) pode alterar a excursão da curva melódica, de forma que associado à sílaba CA seja realizado um tom ascendente; então o conteúdo semântico-pragmático da frase se altera e teremos um outro tipo frásico, uma pergunta: iii) “O João levou o Pedro para CAsa?”. Perguntas e asserções são modos de frase, que podem ser diferenciados por características prosódicas.

A entoação tem, portanto, um papel importante, como se observou, na distinção dos modos de frase e na manifestação do foco. Além disso, a entoação atua em outras funções linguísticas e paralinguísticas/extralinguísticas/identitárias: na segmentação do fluxo da fala em unidades menores (fraseamento prosódico), na manifestação de atos ilocutórios, na expressão de atitudes e emoções, na identificação geográfica/dialetal do falante, etc.; funções essas que não serão exploradas aqui, mas que são tema de uma já polpuda literatura sobre o português (cf. referências). É importante ter em mente, entretanto, que a entoação participa de forma ativa para a expressão de conteúdos da língua e de conteúdos externos a ela, do ponto de vista sintático, semântico, pragmático, expressivo e sociolinguístico (no nível individual ou da comunidade de fala), e, em interface com esses campos, vai consubstanciar o sistema de contornos melódicos que o falante usa para produzir efeitos variados na sua língua. Finalmente, os dois verbetes que procuraram tratar de fonologia da prosódia oferecem evidências de que acento, ritmo, tom e entoação – é importante dizer – são fenômenos linguísticos que pertencem ao componente fonológico da linguagem.


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