PRINCIPAIS ABREVIATURAS E CONVENÇÕES:
℘ : precedência imediata
√: Raiz ou radical morfológico
. : fronteira silábica
/ xxx / : xxx é uma representação fonológica
[xxx] : xxx é uma realização fonética
{ xyz } : num plano puramente teórico, x y z são equivalentes entre si
< xxx > : xxx é uma representação ortográfica
1ªp.sg : 1ª pessoa do singular
Rad : Radical
VT : Vogal Temática
σ : sílaba
ω : palavra (prosódica)
A proposta do estabelecimento da fonologia como um domínio da descrição gramatical claramente definido e individualizado – nomeadamente a partir da sua diferenciação relativamente à fonética – deve-se sobretudo à obra e ao pensamento de Nikolai S. Trubetzkoy, geralmente considerado “o pai da fonologia”. Trubetzkoy foi um linguista russo de inspiração saussuriana que desenvolveu a maior parte do seu trabalho no âmbito do Círculo Linguístico de Praga. As suas principais propostas programáticas para a fundação da fonologia haveriam de ser postumamente publicadas em 1939 (Princípios de Fonologia, Troubetzkoy 1939). Neste livro, torna-se muito explícita a afirmação da fonologia como uma disciplina linguística rigidamente separada da fonética, que o autor circunscreve de forma muito restritiva ao conjunto das “ciências naturais” (Troubetzkoy 1939: 3 ss.).
Em grande parte, é também graças a Troubeztkoy (1939) que a fonologia reúne os principais conceitos com que, ao longo de quase um século de existência enquanto disciplina científica autónoma, têm sido construídas as suas principais hipóteses e explicações: noções como fonema (ou segmento), oposição, contraste, distintividade, entre outras, são largamente teorizadas na obra fundadora de Troubetzkoy (1939).
De todas essas noções, a de distintividade/contrastividade continua a ocupar um lugar central no pensamento fonológico, ainda que com reformulações por vezes bastante profundas (Dresher 2009; 2011): o inventário dos “sons de uma língua” (ou seja, dos “fonemas” de uma língua) será sempre determinado, de acordo com tais propostas, a partir da verificação da sua função distintiva obrigatória. Dois sons foneticamente distintos só corresponderão a dois itens diferentes do inventário fonémico se, independentemente de variações contextuais como as acima referidas para a oscilação de /l/ em [l]-ataque e [w]-coda no português do Brasil, forem os responsáveis por manterem a individualidade lexical de palavras ou morfemas da língua: /l/ e /L/ – opondo, p. ex., mala e malha em português e estando presentes em todas as realizações formadas a partir de √mal- e √malh-, de forma impermeável ao contexto fonético e gramatical – correspondem por isso mesmo a dois fonemas da língua.
Ao longo desta apresentação da fonologia, temo-nos referido à fonologia enquanto uma disciplina descritiva integrada no catálogo das disciplinas gramaticais. O termo “fonologia” tem ainda uma outra aceção, que se inter-relaciona com a primeira. Quando dizemos, por exemplo, que “a fonologia do português só admite ditongos decrescentes” ou que a “fonologia das línguas semíticas é mais rica em consoantes velofaríngeas do que a das línguas românicas”, o termo fonologia, neste tipo de formulações, não remete para o estudo de uma parte da gramática, mas, muito concretamente, para essa mesma parte da gramática. A fonologia de uma língua – assim como a gramática de uma língua, de que a fonologia é parte – constrói-se, portanto, a partir um conjunto articulado de objetos abstratos que à investigação fonológica cabe identificar, descrever e explicar. Por outras palavras: a fonologia, antes de ser uma parte da descrição da gramática, é uma parte da própria “gramática implícita” dos falantes (Abaurre & Wetzels 1992). De acordo com os postulados fundamentais da teoria generativa (cf., especialmente, Chomsky 1986), ela constitui uma parte da “língua-I” dos falantes, a qual, por sua vez, corresponde ao verdadeiro objeto de estudo da linguística. Como recordado por Burton-Roberts et al. (2000): “[…] a teoria fonológica é uma teoria acerca de uma forma do conhecimento. A assunção de que a teoria fonológica é uma teoria acerca de uma forma do conhecimento baseia-se, genericamente, em duas outras aceções: (a) a teoria fonológica é parte da teoria linguística; e, respeitando uma assunção tipicamente chomskyana, (b) a teoria linguística em geral é uma teoria acerca de uma forma de conhecimento” (Burton-Roberts et al. 2000: 2; em tradução da nossa lavra).
Reservaremos esta secção e a seguinte para deixar algumas referências às principais formulações e reformulações teóricas que a investigação fonológica foi conhecendo ao longo da sua história. Mais do que a cronologia dos factos, interessar-nos-á principalmente pôr em relevo as mudanças de perspetiva geradas dentro da própria fonologia acerca da sua natureza epistemológica e acerca dos objetos de que se ocupa o seu estudo.
Entre outras contraposições de modelos teóricos por que teríamos podido optar (modelos derivacionais vs. modelos não derivacionais, p. ex.), escolhemos categorizar, neste momento, os principais modelos fonológicos disponíveis em duas famílias principais: os modelos lineares e os modelos não lineares. Na década de 1980, esta distinção foi escolhida justamente para estabelecer de forma aproximativa um marco cronológico e epistemológico absolutamente determinante entre as teorias fonológicas desenvolvidas até então e as que se lhes seguiram (Pulleyblank 1989; Durand 1990; Abaurre & Wetzels 1992).
Os modelos lineares são aqueles que tipicamente restringem a conceção dos objetos fonológicos a uma concatenação de unidades discretas e sucessivas alinhadas numa só fiada e estabelecendo entre si relações de adjacência simples (“antes-depois”, “esquerda-direita”). Os modelos clássicos da fonologia estruturalista, diretamente herdeiros das propostas de Troubetzkoy (1939), são modelos estritamente lineares, tendo em vista, nomeadamente, a centralidade concedida ao fonema como a unidade fonológica por excelência. Este, na verdade, é originalmente definido por Troubezkoy (1939) como uma unidade “[…] que não se [deixa] analisar em unidades fonológicas menores e sucessivas […]”, constituindo “[…] a mais pequena unidade fonológica […] [da língua, na qual a] face significante de cada palavra […] se deixa analisar em fonemas e pode ser representada como uma sequência determinada de fonemas” (Troubetzkoy 1939: 37-38; em tradução da nossa lavra).
Nestas conceções unilineares, o fonema é, geralmente, a única unidade fonológica admitida, assemelhando-se todas as representações fonológicas a sequências simples de consoantes e vogais ao longo de uma só linha. É assim que devemos entender descrições que encontramos na literatura fonológica mais conservadora do estruturalismo clássico quando autores como J. Mattoso Camara Jr. e J. Morais Barbosa, p. ex., nos apresentam “representações” de palavras como par e trens através de simbolizações como, respetivamente, CVC (Camara 1971: 26) e CCVCCC (Barbosa 1994: 137).
Este “paradigma unilinearista” – comparável, em termos de organização musical, à de partituras monofónicas em que uma só linha rítmico-melódica se faz ouvir – foi substituído, graças ao enriquecimento da análise fonológica, por conceções que teorizam as representações fonológicas como uma sobreposição “polifónica” de diversas unidades e níveis simultâneos, trazendo à luz outras unidades fonológicas para além do fonema, assim como uma diversidade de fenómenos que atuam repartidamente por níveis distintos.
Na primeira secção desta exposição, tentámos descrever simplificadamente o comportamento da altura da vogal temática dos verbos da terceira conjugação em português, mostrando que essa propriedade pode ter um comportamento autónomo do da vogal /i/ que corresponde, de um ponto de vista linear, ao ponto da cadeia segmental a que tal propriedade pertence “de raiz”. Vimos como a altura da vogal temática tem um funcionamento independente do dos segmentos contíguos encontrados nas formas flexionadas e como interage com a estrutura fonológica e morfológica das formas flexionadas, inclusive sendo capaz de “sobreviver” ao apagamento dessa mesma vogal temática e podendo projetar-se, modificando-os, em segmentos como a última vogal do radical. Retomamos aqui esse mesmo exemplo e estas considerações para mostrar agora como – a par dos alinhamentos consoante-vogal-consoante-vogal-… admitidos pelas perspetivas unilineares como as únicas realidades fonológicas – existe “mais fonologia” do que a que poderíamos observar nesse nível linear mais restrito.
Podemos dizer que esta é a principal mudança de perspetiva introduzida pelos chamados modelos não lineares (ou multilineares, uma designação porventura mais apropriada), com desenvolvimento acentuado a partir da década de 1980 (cf. novamente Abaurre & Wetzels 1992): a representação fonológica adquire uma estrutura “polifónica”, como a da partitura de uma orquestra sinfónica. Pensemos que, a ouvidos não muito treinados, o resultado auditivo de uma peça executada por um conjunto de instrumentos em simultâneo pode parecer único e indecomponível; no entanto, ele resulta da sobreposição sincronizada dos diversos naipes de orquestra que executam linhas rítmicas e melódicas independentes (mas inter-relacionadas) entre si, as quais podem ser estudadas individualizadamente ou tomando em consideração a articulação entre as partes musicais a cargo dos diversos naipes e instrumentos.
Referências
Abaurre, M. B. M; Wetzels, W. L. 1992. Sobre a Estrutura da Gramática. Cadernos de Estudos Lingüísticos. 23: 5-18.
Barbosa, J. M. 1994. Introdução ao Estudo da Fonologia e Morfologia do Português. Coimbra: Almedina.
Burton-Roberts, N.; Carr, P.; Docherty, G. (Eds.). 2000. Phonological Knowledge. Conceptual and Empirical Issues. Oxford: Oxford University Press.
Camara Jr., J. M. 1971. Problemas de Lingüística Descritiva. 13ª ed. Petrópolis RJ: Vozes.
Dresher, B. E. 2009. The contrastive hierarchy in phonology. Cambridge: Cambridge University Press.
Durand, J. 1990. Generative and Non-Linear Phonology. London: Longman
Pulleyblank, D. 1989. Nonlinear Phonology. Annual Review of Anthropology. 18(1): 203-226.
Troubetzkoy, N. S. 1939. Grundzüge der Phonologie. Trad. fr. de J. Cantineau. Principes de phonologie. Paris: Klincksieck, 1970.